segunda-feira, julho 21, 2008

Em conversa: Beck (1/3)

Iniciamos hoje a publicação da versão integral de uma entrevista com Beck, sobre o álbum Modern Guilt, que serviu de base a um artigo publicado no DN a 15 de Julho.

Quando editou The Information, em 2006, falou mais dos meios de divulgação e distribuição que sobre propriamente a música... Era o assunto na ordem do dia... A novidade...
A novidade já deixou de o ser para mim. Está gasta. E neste disco já não estou a falar tanto disso. Havia muito de novo na edição digital, a exploração dos YouTube, os blogues. Os chamados new media. A novidade deixou de o ser e podemos centrar as atenções no que é verdadeiramente importante. Que são as canções. Fazer canções é o meu trabalho.

Modern Guilt é um álbum de canções. Como definiu o caminho que ele tomou?
Estava com vontade de reduzir a informação, de voltar atrás. Simplificar... Nos últimos anos pensei muito sobre o que era realmente importante na canção e na gravação de álbuns. O que é essencial... Na vida há computadores, telemóveis e emails. Todo um conjunto de coisas novas que se infiltraram nas nossas vidas. E há muito que pensava em ver-me livre do telemóvel e do email. Tentar guardar o tempo para o que para mim é realmente mais importante.

O que o fez mudar de atitude?
Creio que é uma reacção natural ao facto da novidade ter deixado de o ser. Voltei a ouvir discos em vinil em vez dos mp3. Há aqui uma vontade de regressar ao tangível, ao real. Tenho pensado muito sobre este disco. No que havia de ser. E senti que as canções deveriam ser simples, melódicas... E deveriam querer dizer alguma coisa em vez de apresentarem um conjunto de palavras que, em conjunto, soassem a algo cool. Não decidi se seria uma coisa mais séria ou ligeira. Mas gravitei em torno de algo que estaria no meio...

E como surgiram os temperos? Há aqui uma presença evidente da memória do psicadelismo de finais de 60...
Tem muito a ver com o que tenho estado a ouvir nos últimos três ou quatro anos. Sempre quis fazer um álbum rock. E houve um período em que dei por mim a ouvir muitos nuggets. Stooges do princípio e garage rock... Isto foi aí nos finais dos anos 90. E houve então toda aquela nova cena garage rock, com os White Stripes, os The Hives... Mas fazer um disco nestes termos, naquela atura, teria parecido que eu estava a querer entra num comboio em andamento. E evitei fazê-lo. Mas queria fazer um álbum de guitarras. Há uns três anos comecei a ouvir algum rock psicadélico bem obscuro. Discos de todo o mundo, da Turquia à América do Sul... E comecei a tirar alguma inspiração dessas fontes. O processo começou quanto ainda estava a trabalhar no The Information. E ainda tentei usar alguns destes sons nesse disco... Queria fazer canções que pudesse tocar ao vivo. Canções nas quais pudesse viver por algum tempo... Há muita fala e rapping em muitos dos meus discos. Sou um cantor e quero cantar. Era isso o que queria fazer.

Há poucos meses saiu uma reedição de Odelay, com extras. Nos dias em que editou originalmente esse álbum, em 1996, o mainstream teve um flirt consigo. Mas resistiu...
Não creio que nasci para ser uma celebridade. Sempre operei a um nível em que há alguém que faz discos e outros que os compram. E isso não me assusta. Posso ser um trabalhador musical. Mas houve uma altura em que estava receber ofertas milionárias para fazer campanhas publicitárias de todo o género. E disse não a todas. As coisas estavam a começar a caminhar para terrenos onde não me sentia bem. Senti que me devia retirar musicalmente. E durante alguns álbuns, de propósito, não fiz nada que se aproximasse à ideia de música pop. E quando foi pop aconteceu de uma forma algo perversa, como no Midnite Vultures. Foi talvez uma maneira de proteger algo... Porque quando somos engolidos pelo mainstream, torna-se quase impossível fugir às amarras.

Mutations, em 1998, não foi, logo, um disco de resistência?
Foi sim. Eu sabia bem o que as pessoas queriam. E quando saiu o Mutations a minha editora deixou de existir. Houve uma fusão e fui parar a uma editora maior. E essa editora maior tinha acabado de assinar o Eminem. E da primeira vez que fui ao novo escritório o Eminem foi a primeira coisa que me mostraram. Estavam todos muito entusiasmados. Era óbvio que ia ser um artista enorme.... Era o que as pessoas queriam, é certo... Mas eu queria fazer filmes de Fellini em música. Truffaut ou Almodóvar... Interessava-me mais a arte que o seu potencial.

Uma arte capaz de comunicar...
Temos de ser o rosto para chegar a um certo nível. E eu não quero ser esse rosto. Quero ser a figura que ajuda. Não quero ser o homem sob os holofotes que todos podem ver. Houve uma altura em que estava numa posição em que o poderia ter vindo a ser... Mas a única forma de o fazer, para mim, teria sido como uma peça de arte performativa. Usando a ironia. O humor. Aquilo seria uma anedota para mim. Só faria sentido se fosse uma sátira... E há um lugar para isso. Artistas como um Gainsbourg ou o Prince têm essas qualidades. São génios que usam a sátira no que fazem.
(continua amanhã)