domingo, junho 15, 2008

Os bichos de Vieira da Silva

13 de Junho de 2008: a data do centenário do nascimento de Maria Helena Vieira da Silva justificou um reencontro com a sua pintura e, em particular, com um documentário de 1976 sobre os seus espaços íntimos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Junho), com o título 'Cerimónia secreta'.

Em 1976, José Álvaro Morais filmou um documentário sobre Vieira da Silva que adoptava no título uma expressão de Arpad Szenes, marido da pintora: Ma Femme Chamada Bicho. Era uma frase da intimidade e o mais tocante do filme nascia dessa sensação de sermos convocados para qualquer coisa de privado, a meio caminho entre as rotinas do quotidiano e os sabores de uma cerimónia de secretos artifícios. No derradeira cena, a pintora mostrava uma vez mais o seu belo gato branco e cinzento, surgindo com um rosto absolutamente teatral, pintado de tinta negra, contrastando com os seus cabelos grisalhos. No plano final, Vieira da Silva apresentava-se assim, de rosto negro, de braço dado com Arpad Szenes, passeando ao sol.
Ao rever tais imagens, não pude deixar de pensar nas obscenidades que agora nos rodeiam, promovendo a privacidade dos “famosos” (não necessariamente pintores de grande mérito) a uma espécie de norma de percepção das relações humanas. De facto, havia em Vieira da Silva uma resistência à vulgarização mediática que, embora decorrendo de um pudor ancestral, correspondia também a uma filosofia de sereno radicalismo. A saber: não faz sentido supor que podemos “revelar” a intimidade de um ser humano porque essa intimidade é algo que muda de lugar e significação cada vez que julgamos apropriá-la. Chama-se a isso, aliás, estar vivo.
Daí que haja no seu universo visual um paradoxo activo e, à sua maneira, festivo. É algo que nasce do sentimento de que cada quadro regista uma experiência concreta (lembremos as suas representações do 25 de Abril), ao mesmo tempo abrindo para um labirinto potencialmente infinito e irredutivelmente abstracto.
Em tempos de triunfo dos muitos artifícios das imagens digitais, a pintura de Vieira da Silva, mesmo nos seus mistérios mais resistentes, remete-nos para a verdade humana do nosso ver e sentir. É, por isso, uma pintura em que o assumido primitivismo nos projecta sempre num desejo de futuro. Um desejo sem nome, mas de acontecer certo, preciso, como um bicho.

>>> Site oficial do Museu Arpád Szenes - Vieira da Silva.