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Recordo-me de, há mais de vinte anos, como colaborador do semanário Expresso, escrever regularmente sobre imagens do futebol, tentando trabalhar sobre duas ideias básicas: primeiro, que o futebol estava a abrir novos espaços formais e simbólicos na comunicação televisiva; segundo, que o futebol, enquanto fenómeno mediático, estava a protagonizar muitas transformações dos laços internos da colectividade. Recordo-me também que, com frequência, algumas vozes amigas (dentro e fora do jornal) me vinham dar conta da sua preocupação com a minha sanidade mental: “Então tu perdes o teu tempo a escrever sobre futebol?...”
O meu caso pessoal é, obviamente, irrelevante. Além do mais, é com carinho que recordo esses tempos. Seja como for, não posso deixar de constatar como os tempos mudaram. Hoje em dia, o futebol é uma espécie de “língua franca” da sociedade e todo aquele que, no exercício das suas funções jornalísticas, não manifestar alguma disponibilidade em relação às suas peripécias, corre o risco de ser etiquetado de pretensioso e intelectual (com essa particularidade muito portuguesa de a palavra “intelectual” ser aplicada como uma forma “natural” de insulto).
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Mesmo sem esquecer as respeitáveis excepções, vale a pena perguntar: que valores “patrióticos” nos são inculcados através do futebol? Permito-me citar este exemplar resumo de tais valores, neste caso a propósito de alguns comentários televisivos: “Fixação agressiva na arbitragem, imaginário de que todos conspiram para nos prejudicar, progressiva decomposição da voz à medida que o pior se torna certo; e, sobretudo, demissão total da vocação elementar da sua função, a de compreender melhor o jogo.”
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Bégaudeau é, como agora se diz, uma personalidade transversal. Escreveu o livro Entre les Murs, sobre a sua experiência como professor, tendo interpretado o seu próprio papel no filme homónimo com que Laurent Cantet ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Quando Entre les Murs estrear entre nós (Outubro), e tendo em conta a sua subtil encenação das relações professores/alunos, ficamos todos à espera de saber se os sacerdotes do futebol sentem o mesmo fervor patriótico face aos problemas da educação. E também, já agora, à importância social do cinema.