François Bégaudeau [foto] é professor, actor do filme Entre les Murs (Palma de Ouro em Cannes), aliás inspirado num livro de sua autoria, e cronista de futebol no jornal de Le Monde: também no seu país, faz sentido perguntar o que é, e como funciona, o chauvinismo futebolístico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Junho), com o título 'Entre futebol e patriotismo'.
Recordo-me de, há mais de vinte anos, como colaborador do semanário Expresso, escrever regularmente sobre imagens do futebol, tentando trabalhar sobre duas ideias básicas: primeiro, que o futebol estava a abrir novos espaços formais e simbólicos na comunicação televisiva; segundo, que o futebol, enquanto fenómeno mediático, estava a protagonizar muitas transformações dos laços internos da colectividade. Recordo-me também que, com frequência, algumas vozes amigas (dentro e fora do jornal) me vinham dar conta da sua preocupação com a minha sanidade mental: “Então tu perdes o teu tempo a escrever sobre futebol?...”
O meu caso pessoal é, obviamente, irrelevante. Além do mais, é com carinho que recordo esses tempos. Seja como for, não posso deixar de constatar como os tempos mudaram. Hoje em dia, o futebol é uma espécie de “língua franca” da sociedade e todo aquele que, no exercício das suas funções jornalísticas, não manifestar alguma disponibilidade em relação às suas peripécias, corre o risco de ser etiquetado de pretensioso e intelectual (com essa particularidade muito portuguesa de a palavra “intelectual” ser aplicada como uma forma “natural” de insulto).
Depois do afastamento da selecção portuguesa do Euro 2008, tudo isso adquire nova pertinência, quanto mais não seja porque se está a assistir a um curioso fenómeno mediático: com a derrota face à Alemanha, os discursos de exaltação patriótica remeteram-se a um comprometido silêncio. Porquê? A resposta é desoladoramente simples. De facto, tais discursos vivem de uma única “ideia”: a de que a Pátria se afirma através de “vitórias”. Uma simples derrota é vivida como um trágico bloqueio ideológico: literalmente, não sabem que dizer face à evidência (de muitas décadas...) da excelência do futebol alemão.
Mesmo sem esquecer as respeitáveis excepções, vale a pena perguntar: que valores “patrióticos” nos são inculcados através do futebol? Permito-me citar este exemplar resumo de tais valores, neste caso a propósito de alguns comentários televisivos: “Fixação agressiva na arbitragem, imaginário de que todos conspiram para nos prejudicar, progressiva decomposição da voz à medida que o pior se torna certo; e, sobretudo, demissão total da vocação elementar da sua função, a de compreender melhor o jogo.”
Hélas! São palavras que não se referem ao caso português, mas sim ao que aconteceu em França (cuja selecção foi eliminada na fase de grupos). Quem as escreve é François Bégaudeau, notável comentador do jornal Le Monde (edição do dia 20), há muitos anos empenhado em partilhar um gosto real pelo fascínio do jogo jogado, sem que isso o impeça de se demarcar em relação a todas as demagogias televisivas e “patrióticas”.
Bégaudeau é, como agora se diz, uma personalidade transversal. Escreveu o livro Entre les Murs, sobre a sua experiência como professor, tendo interpretado o seu próprio papel no filme homónimo com que Laurent Cantet ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Quando Entre les Murs estrear entre nós (Outubro), e tendo em conta a sua subtil encenação das relações professores/alunos, ficamos todos à espera de saber se os sacerdotes do futebol sentem o mesmo fervor patriótico face aos problemas da educação. E também, já agora, à importância social do cinema.
Recordo-me de, há mais de vinte anos, como colaborador do semanário Expresso, escrever regularmente sobre imagens do futebol, tentando trabalhar sobre duas ideias básicas: primeiro, que o futebol estava a abrir novos espaços formais e simbólicos na comunicação televisiva; segundo, que o futebol, enquanto fenómeno mediático, estava a protagonizar muitas transformações dos laços internos da colectividade. Recordo-me também que, com frequência, algumas vozes amigas (dentro e fora do jornal) me vinham dar conta da sua preocupação com a minha sanidade mental: “Então tu perdes o teu tempo a escrever sobre futebol?...”
O meu caso pessoal é, obviamente, irrelevante. Além do mais, é com carinho que recordo esses tempos. Seja como for, não posso deixar de constatar como os tempos mudaram. Hoje em dia, o futebol é uma espécie de “língua franca” da sociedade e todo aquele que, no exercício das suas funções jornalísticas, não manifestar alguma disponibilidade em relação às suas peripécias, corre o risco de ser etiquetado de pretensioso e intelectual (com essa particularidade muito portuguesa de a palavra “intelectual” ser aplicada como uma forma “natural” de insulto).
Depois do afastamento da selecção portuguesa do Euro 2008, tudo isso adquire nova pertinência, quanto mais não seja porque se está a assistir a um curioso fenómeno mediático: com a derrota face à Alemanha, os discursos de exaltação patriótica remeteram-se a um comprometido silêncio. Porquê? A resposta é desoladoramente simples. De facto, tais discursos vivem de uma única “ideia”: a de que a Pátria se afirma através de “vitórias”. Uma simples derrota é vivida como um trágico bloqueio ideológico: literalmente, não sabem que dizer face à evidência (de muitas décadas...) da excelência do futebol alemão.
Mesmo sem esquecer as respeitáveis excepções, vale a pena perguntar: que valores “patrióticos” nos são inculcados através do futebol? Permito-me citar este exemplar resumo de tais valores, neste caso a propósito de alguns comentários televisivos: “Fixação agressiva na arbitragem, imaginário de que todos conspiram para nos prejudicar, progressiva decomposição da voz à medida que o pior se torna certo; e, sobretudo, demissão total da vocação elementar da sua função, a de compreender melhor o jogo.”
Hélas! São palavras que não se referem ao caso português, mas sim ao que aconteceu em França (cuja selecção foi eliminada na fase de grupos). Quem as escreve é François Bégaudeau, notável comentador do jornal Le Monde (edição do dia 20), há muitos anos empenhado em partilhar um gosto real pelo fascínio do jogo jogado, sem que isso o impeça de se demarcar em relação a todas as demagogias televisivas e “patrióticas”.
Bégaudeau é, como agora se diz, uma personalidade transversal. Escreveu o livro Entre les Murs, sobre a sua experiência como professor, tendo interpretado o seu próprio papel no filme homónimo com que Laurent Cantet ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Quando Entre les Murs estrear entre nós (Outubro), e tendo em conta a sua subtil encenação das relações professores/alunos, ficamos todos à espera de saber se os sacerdotes do futebol sentem o mesmo fervor patriótico face aos problemas da educação. E também, já agora, à importância social do cinema.