Apesar de ligada a uma indústria (basta existir o desejo de venda para que assim o seja), a música popular não perdeu nunca, pelo menos em certas franjas da invenção, uma relação próxima com o mundo da arte. E a cada nova geração, a cada novo movimento, surgem projectos que se revelam herdeiros dessa forma rara de dialogar entre os campos da cultura popular e os da chamada high art como nos mostraram os eventos Exploding Plastic Inevitable ligados à entourage de Warhol na Nova Iorque de finais de 60. Os No Age não serão os Velvet Underground da década 00. Mas são a materialização, através de uma ética DIY (do it yourself) de uma vivência que transcende a música, entendendo-a como parte de uma obra total que envolve a criação de imagens, de roupas, uma postura particular e um gosto pela escolha dos locais onde se apresenta ao vivo, aliando aos códigos do concerto rock’n’roll uma série de características mais próximas da performance. Nem que estas características se resumam à invulgaridade dos locais escolhidos para actuar, seja no caudal de um rio ou numa mercearia vegetariana... Com raízes em vidas anteriores na cena hardcore de Los Angeles, os No Age são uma dupla constituída por Dean Spunt (bateria e voz) e Randy Randall (guitarra). Há um ano uma colecção de cinco EPs gerava um álbum de estreia (Weirdo Ripper) que se fez escutar entre os mais atentos à cultura indie. Entretanto, um artigo na New Yorker e uma crítica de raro entusiasmo na Pitchfork fizeram de Nouns um dos acepipes mais aguardados do ano. O primeiro confronto com o álbum que assinala agora a estreia do grupo pela Sub Pop não desilude. Pelo contrário, vinca mais ainda o impulso experimentalista que morava já na obra anterior do duo, insistindo, através de uma postura lo-fi, que pela frente temos mais que apenas uma manifestação de urgência noise punk. Sob o caos eléctrico revela-se a ordem formal da canção. Além das muralhas de som descobre-se o prazer da forma, a demanda pelo melodismo, o gosto do ensaio da textura. Entre a forma encontrada e o desejo de procurar mais além, Nouns mostra-nos um álbum que convida à descoberta a cada reencontro. Não se trata de uma obra definitiva. Mas é claro depoimento de uma dupla que tem uma ideia entre mãos, que está no caminho certo. E que teremos de acompanhar... O que não nos impede de aqui reconhecer um dos mais estimulantes álbuns rock’n’roll dos últimos tempos.
No Age
“Nouns”
Sub Pop / Popstock
4 / 5
Para ouvir: MySpace
É cada vez mais para lá das frontreiras dos géneros, sobretudo naquelas terras de ninguém em que tudo pode acontecer, que têm surgido algumas das mais interessantes propostas de reinvenção da noção do que é ser pop neste início de século. Seeing Sounds, o novo álbum do colectivo N.E.R.D. revela-se, mais que um espaço de projecção de genéticas hip hop, um cativante laboratório de ideias com a noção de canção pop como meta, juntando no processo de enadio pistas várias, da soul ao rock clássico. Naturalmente sem esquecer o hip hop... O discurso promocional tem centrado alguma atenção na relação do disco com o visionamento de um documentário sobre sinestesia (condição neurológica que leva a pessoa a sentir os sons como cores ou formas)... Daí o título do álbum. Mas mais que apenas uma boa colecção de canções de cores e formas sugestivas, Seeing Sounds é um interessante exemplo de como a soma da experiência das partes pode reforçar a personalidade do todo. Isto é, no reencontro de Pharrell Williams com o parceiro (nos Neptunes) Chad Hugo e Shay Haley juntam-se em estúdio figuras de absoluto protagonismo na vivência pop e hip hop dos últimos anos. Contudo, contra o que se poderia esperar em profissionais da construção do êxito para terceiros, o que vemos é antes uma firme insistência na vontade de experimentar ideias. Seguir um caminho que vem de discos anteriores. Juntar. Misturar. E criar um álbum que, com alma mais ousada que a maioria das colaborações que os músicos têm assinado fora de casa, possa representar novo paradigma para ideias a usar em futuras aventuras com outros parceiros... Em grande parte assinado por Pharrell Williams, o disco respira a luz e cadência de um monumento pop. Contudo, a cada canção atribui a sua “cor”, seja ela herdada da soul (Sooner Or Later), rock’n’roll (Kill Joy) ou mesmo resultado de um piscar de olho ao drum'n'bass (Everyone Nose). Liricamente o álbum tem sido alvo de críticas à inconsequência das palavras cantadas. Mas não essa, afinal, uma das heranças maiores de uma certa cultura pop?
N.E.R.D.
“Seeing Sounds”
Star Track / Universal
4 / 5
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Um disco a solo de Manel Cruz (por muito que os jornalistas insistam em chamar-lhe “Manuel”, ele assina “Manel” nos discos que faz)... O músico preferiu dar-lhe nome de projecto: Foge Foge Bandido. A solo foi talvez a concepção das músicas e imagens e a condução das ideias. Mas na verdade Foge Foge Bandido é o disco do ex-Ornatos Violeta (presentemente a trabalhar na estreia de Supernada) no qual mais colaborações se registam. Colaborações que vão dos familiares do próprio Manel Cruz (incluindo pais e irmãos) aos demais ex-Ornatos Violeta, juntando ainda outros mais. Duplo álbum de 68 faixas, entre canções e vinhetas (às quais Manel Cruz gosta de chamar separadores), servido num livro de 140 páginas, a estreia de Foge Foge Bandido propõe uma ideia musical e visual invulgar, mas sedutora. Não será exactamente um herdeiro da tradição “conceptual” de 70, mas a sua estrutura e duração sugere uma ideia que transcende a lógica mais directa da colecção de canções. Por outro lado, e apesar dos referidos “separadores” de formas mais livres, não estamos necessariamente em terreno experimental. Dividido entre duas faces distintas – O Amor Dá-me Tesão (CD1) e Não Fui Eu Que Estraguei (CD2) – o álbum define uma personalidade à qual as imagens do livro que acompanha as canções dão um sentido de corpo. Mais que nos Pluto, Foge Foge Bandido parece ser o mais evidente herdeiro de algumas pistas lançadas nos Ornatos Violeta, abrindo depois as janelas ao prazer de descobertas mais além... Criado ao longo de nove anos, o álbum é aparente épico para quem quiser que o assim seja... Na verdade, parece mais um conjunto de pequenos mundos que convidam à descoberta e que, só aos poucos, revela o que esconde entre tantas vozes e palavras.
Foge Foge Bandido
“O Amor Dá-me Tesão/Não Fui Eu Que Estraguei”
Turbina
3 / 5
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Onze anos depois da edição de um primeiro álbum que rapidamente colocou a banda na mira das atenções da cena indie, os Death Cab For Cutie são hoje mais um daqueles casos que comprovam que o culto de ontem pode ser o fenómeno de amanhã, tantas outras vezes encenado ao longo da história da música popular. Plans (de 2005), o primeiro álbum que editaram por uma multinacional, valeu-lhes vendas superiores a um milhão de discos nos EUA, assim como uma nomeação para os Grammys. Narrow Stairs, o seu sucessor, entrou directamente para o primeiro lugar nos Estados Unidos na semana de lançamento. E tem somado palavras de entusiasmo, sobretudo na imprensa norte-americana. Porém, uma certa postura de cautela que Plans já revelara não parece abandonar os Death Cab For Cutie nesta etapa em patamar de maior visibilidade. As “rugosidades” indie que se saborearam, anos a fio, nos álbuns anteriores, deu lugar a uma casa mais arrumada. E mesmo mostrando Narrow Stairs alguma mais evidente vontade em não polir tudo o que acontece, raros são os momentos em que o velho encanto volta a brilhar (revelando inclusivamente a faixa de abertura, Bixby Canyon Bridge, o que parece um piscar de olho ao terreno Coldplay)... O novo disco é, mesmo assim, mais ousado e revela mais surpresa que o pasteurizado Plans. I Will Possess Your Heart é longa dissertação que não perde nem o Norte nem a noção de coesão formal da canção. E Pity And Fear devolve intensidade dramática, revelando inclusivamente nuvens de sombras onde antes morava outra luminosidade... Mesmo assim, desde que editou Give Up, parece que as melhores ideias de Ben Gibbard fugiram para o seu projecto paralelo Postal Service (cujo segundo álbum, diz-se, não deverá ver a luz do dia antes de 2010)...
Death Cab For Cutie
“Narrow Stairs”
Atlantic / Warner
3 / 5
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Os Ladytron são hoje uma banda activa entre os raros sobreviventes únicos de uma vaga de projectos nascidos na alvorada da presente década e que então revelavam em comum interesses claros pelas memórias mais sombrias da pop electrónica de finais de 70 e inícios de 80. Dessas heranças colheram ideias que projectaram numa música sombria, intensa, contagiante mas nunca festiva. De certta maneira, anteciparam jogos pop de revisitação do legado pós-punk que se tornaram linguagem corrente em muito do “novo rock” nascido sobretudo na Inglaterra e EUA de meados da década 00. Agora quarto álbuns depois da belíssima estreia em 604 e de interessantes depoimentos de continuidade registados nos sucessores Light & Magic (2002) e The Witching Hour (2005), os Ladytron revelam que, na verdade, pouco mais souberam acrescentar às sugestões lançadas logo nos seus primeiros passos. A sua identidade, é certo, revela a solidez de um conceito. A negritude urbano-depressiva, assimilando traços do presente definidos sob a evocação de sonoridades captadas em velhos teclados de finais de 70, contos de escuridão, e uma voz capaz de dar fala a esta dramaturgia pop, demarcando um espaço muito próprio e reconhecível, são mérito evidente. Velocifero, contudo, é palco onde a já antiga falta de novas ideias na forma se alia a um alinhamento de canções no qual não parece morar a inspiração de outros tempos. Os adeptos do mais do mesmo vão gostar. Mas ao fim de três álbuns “iguais”, para quê um quarto?
Ladytron
“Velocifero”
Nettwerk / Edel
2 / 5
Para ouvir: MySpace
Também esta semana:
Fratellis, Yazoo (reedições), Mark Stewart, Beach House, Joseph Arthur, Gonzales
Brevemente:
16 de Junho: Fleet Foxes, Windsor For The Derby, Coldplay, The Rascals, Dennis Wislon, The Feeder, The Music, Herbaliser, Dead can Dance (reedições), Beach Boys (caixa de singles), Joan As Policewoman,
23 de Junho: Sigur Rós, The Presets, Mariza, My Bloody Valentine (reeedição), Cage The Elephant, Donna Summer, Morten Harket, Disco Itália (compilação), Infadels, Marc Almond (compilação), Billy Idol (best of), Spiritualized (ed local)
30 de Junho: David Bowie (reedição), Dirty Pretty Things, Van Morrison (reedições), Burt Bacharah (antologia)
Julho: Beck, Patti Smith + Kevin Shields, Ratatat, Tricky, Black Kids, Jonathan Richman, Micah P Hinson, Mr Scruff, Wire, U2 (reedições), Marianne Faithfull (live)
Agosto: Teddy Thompson, Durutti Column (BSO), U2 (reedições)