Os textos que se seguem decorrem de uma recente visita de um dos autores deste blog (NG) ao Museu de Cinema de Turim — foram publicados (com os títulos, respectivamente: 'O grande templo do cinema' e 'Cinema italiano: um património riquíssimo') no Diário de Notícias de 5 de Maio.
N.G.: É impossível passear pela cidade de Turim sem deixar de reparar numa estrutura invulgar que se destaca de uma paisagem urbana em que os edifícios raras vezes ultrapassam os cinco andares. Com 167 metros de altura, dominada por uma enorme cúpula, a Mole Antonelliana é um dos ex-líbris da cidade. E raro é o guia turístico ou conselho de amigo que por lá já passou antes que não coloque este "monumento" entre as paragens obrigatórias em Turim. Pela sua imponência arquitectónica, pelo observatório que permite uma vista panorâmica sobre a cidade e, acima de tudo, pelo Museo Nazionale del Cinema (Museu Nacional do Cinema) que alberga há alguns anos. Considerado como um dos melhores do mundo no género, concede algum protagonismo ao cinema italiano mas em nada esquece outras cinematografias de paragens mais distantes.
O acervo do museu soma hoje números impressionantes. As colecções incluem perto de 12 mil filmes, 20 mil objectos (de aparelhos a memorabillia), 750 mil fotografias, 26 mil livros, 30 mil periódicos... Naturalmente apenas parte da colecção está exposta, sugerindo ao visitante uma viagem pela história do cinema, sem que tal esqueça a sua pré-história. Um andar inteiro da Mole Antonelliana é inclusivamente dedicado às primeiras experiências de imagem em movimento, desde os jogos de sombras em voga nas cortes do século XVIII ao advento do cinematógrafo e ao surgimento, logo depois, da indústria do cinema.
Uma visita ao museu pede algumas horas de disponibilidade. Começa precisamente por um percurso cronológico pela arqueologia dos antepassados do cinema. Nesse primeiro andar as paredes abrigam uma numerosa colecção de aparelhos, desde as primeiras máquinas de ilusões ópticas aos cinematógrafos. Juntam-se cartazes promocionais dos espectáculos visuais, sobretudo no século XIX. No centro do espaço, um labirinto de salas permite a experimentação dessas primeiras ilusões de movimento, promovendo uma interacção com o visitante que percorre uma máquina do tempo imaginária que transforma em vida presente as memórias de velhas imagens.
O percurso sugerido segue depois para pisos superiores dedicados a vários aspectos da história do cinema. Um andar inteiro segue, a par e passo, as etapas da produção de um filme, da ideia do argumento à exibição. Recorda os estúdios, os realizadores, a criação de cenários, do guarda-roupa e, claro, não esquece as "estrelas". No piso superior, uma galeria impressionante de posters recorda artes do desenho e da pintura ao serviço da promoção cinematográfica.
A fechar o percurso é proposta uma visita a cenários recriados de filmes e a espaços que sugerem o cinema de género, do westrern à ficção científica. Depois, nada como percorrer uma rampa que sobe até meia altura da cúpula, ladeada por fotografias e objectos que ilustram mais de cem anos de filmes, realizadores e actores.
O Museo Nazionale del Cinema mora numa casa com história. A Mole Antonelliana (assim baptizada em homenagem ao seu arquitecto, Alessandro Antonelli), foi inicialmente concebida, em 1862, como uma sinagoga. Contratempos e desentendimentos conduziram em 1878 à compra do edifício, ainda inacabado, pela Comuna di Torino. A obra foi concluída em 1899, já pelo filho do arquitecto, Constanzo Antonelli, inaugurada como monumento à unidade nacional. Recorde-se que Victor Emanuel II, o primeiro rei da Itália unificada, era natural de Turim.
J.L.: No seu filme O Caimão, Nanni Moretti aborda a Itália de Silvio Berlusconi a partir da própria indústria cinematográfica. Mais concretamente, trata-se de retratar as atribulações de um pequeno produtor de cinema que se vê a braços com um projecto de filme sobre a figura de Berlusconi. Para além das óbvias ligações com o seu presente (O Caimão foi, em Itália, um dos grandes sucessos de 2006), o filme era também uma maneira de Moretti homenagear as vias mais populares da tradição cinematográfica italiana. Afinal de contas, ele é um dos herdeiros de um cinema antigo ("pré-televisão") que vivia da popularidade dos seus actores, mas também desse misto de crueldade e ternura com que sabia abordar os grandes temas sociais, desde a reconversão económica pós-Segunda Guerra Mundial até à evolução dos usos e costumes durante a década de 60.
Estamos a falar de um cinema que, desde os tempos do mudo, cultivou os valores do grande espectáculo. Bastará lembrar o caso emblemático de Cabiria (1914), de Giovanni Pastrone, verdadeiro monumento cinematográfico apresentado no Festival de Cannes de 2006 numa cópia restaurada com o patrocínio de Martin Scorsese. Quando, na primeira metade da década de 40, são lançadas as bases do neo-realismo, isso decorre de uma outra dimensão vital: a capacidade de o cinema italiano funcionar como espelho multifacetado das convulsões históricas, contribuindo decisivamente para a formação de uma consciência nacional. Títulos como Roma, Cidade Aberta (1945) e Paisà (1946), ambos de Roberto Rossellini, ou Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio De Sica, são verdadeiras histórias de resgate, contribuindo para a superação emocional das muitas formas de destruição herdadas da guerra.
O cinema italiano manteve ao longo das décadas de 60/70, nomeadamente no mercado português, uma genuína popularidade. A comédia, mais ou menos cruzada com o melodrama, foi um género exuberante, através de vedetas como Vittorio Gassman, Marcello Mastroianni ou Claudia Cardinale e realizadores como Luigi Comencini, Dino Risi ou Mario Monicelli. Isto, claro, sem esquecermos que essa foi também a época em que, através de autores como Michelangelo Antonioni ou Federico Fellini, a produção italiana esteve na linha da frente das grandes transformações dos "novos cinemas".
Apesar do contributo de autores como Nanni Moretti, Giuseppe Tornatore ou Roberto Benigni, a história do cinema italiano das últimas décadas está irremediavelmente marcada pela mediocridade imposta pelas televisões (Fellini, em filmes como Ginger e Fred, de 1986, foi dos primeiros a retratar esse processo de degradação). Seja como for, nada pode apagar a vitalidade da sua história e do seu património.
N.G.: É impossível passear pela cidade de Turim sem deixar de reparar numa estrutura invulgar que se destaca de uma paisagem urbana em que os edifícios raras vezes ultrapassam os cinco andares. Com 167 metros de altura, dominada por uma enorme cúpula, a Mole Antonelliana é um dos ex-líbris da cidade. E raro é o guia turístico ou conselho de amigo que por lá já passou antes que não coloque este "monumento" entre as paragens obrigatórias em Turim. Pela sua imponência arquitectónica, pelo observatório que permite uma vista panorâmica sobre a cidade e, acima de tudo, pelo Museo Nazionale del Cinema (Museu Nacional do Cinema) que alberga há alguns anos. Considerado como um dos melhores do mundo no género, concede algum protagonismo ao cinema italiano mas em nada esquece outras cinematografias de paragens mais distantes.
O acervo do museu soma hoje números impressionantes. As colecções incluem perto de 12 mil filmes, 20 mil objectos (de aparelhos a memorabillia), 750 mil fotografias, 26 mil livros, 30 mil periódicos... Naturalmente apenas parte da colecção está exposta, sugerindo ao visitante uma viagem pela história do cinema, sem que tal esqueça a sua pré-história. Um andar inteiro da Mole Antonelliana é inclusivamente dedicado às primeiras experiências de imagem em movimento, desde os jogos de sombras em voga nas cortes do século XVIII ao advento do cinematógrafo e ao surgimento, logo depois, da indústria do cinema.
Uma visita ao museu pede algumas horas de disponibilidade. Começa precisamente por um percurso cronológico pela arqueologia dos antepassados do cinema. Nesse primeiro andar as paredes abrigam uma numerosa colecção de aparelhos, desde as primeiras máquinas de ilusões ópticas aos cinematógrafos. Juntam-se cartazes promocionais dos espectáculos visuais, sobretudo no século XIX. No centro do espaço, um labirinto de salas permite a experimentação dessas primeiras ilusões de movimento, promovendo uma interacção com o visitante que percorre uma máquina do tempo imaginária que transforma em vida presente as memórias de velhas imagens.
O percurso sugerido segue depois para pisos superiores dedicados a vários aspectos da história do cinema. Um andar inteiro segue, a par e passo, as etapas da produção de um filme, da ideia do argumento à exibição. Recorda os estúdios, os realizadores, a criação de cenários, do guarda-roupa e, claro, não esquece as "estrelas". No piso superior, uma galeria impressionante de posters recorda artes do desenho e da pintura ao serviço da promoção cinematográfica.
A fechar o percurso é proposta uma visita a cenários recriados de filmes e a espaços que sugerem o cinema de género, do westrern à ficção científica. Depois, nada como percorrer uma rampa que sobe até meia altura da cúpula, ladeada por fotografias e objectos que ilustram mais de cem anos de filmes, realizadores e actores.
O Museo Nazionale del Cinema mora numa casa com história. A Mole Antonelliana (assim baptizada em homenagem ao seu arquitecto, Alessandro Antonelli), foi inicialmente concebida, em 1862, como uma sinagoga. Contratempos e desentendimentos conduziram em 1878 à compra do edifício, ainda inacabado, pela Comuna di Torino. A obra foi concluída em 1899, já pelo filho do arquitecto, Constanzo Antonelli, inaugurada como monumento à unidade nacional. Recorde-se que Victor Emanuel II, o primeiro rei da Itália unificada, era natural de Turim.
J.L.: No seu filme O Caimão, Nanni Moretti aborda a Itália de Silvio Berlusconi a partir da própria indústria cinematográfica. Mais concretamente, trata-se de retratar as atribulações de um pequeno produtor de cinema que se vê a braços com um projecto de filme sobre a figura de Berlusconi. Para além das óbvias ligações com o seu presente (O Caimão foi, em Itália, um dos grandes sucessos de 2006), o filme era também uma maneira de Moretti homenagear as vias mais populares da tradição cinematográfica italiana. Afinal de contas, ele é um dos herdeiros de um cinema antigo ("pré-televisão") que vivia da popularidade dos seus actores, mas também desse misto de crueldade e ternura com que sabia abordar os grandes temas sociais, desde a reconversão económica pós-Segunda Guerra Mundial até à evolução dos usos e costumes durante a década de 60.
Estamos a falar de um cinema que, desde os tempos do mudo, cultivou os valores do grande espectáculo. Bastará lembrar o caso emblemático de Cabiria (1914), de Giovanni Pastrone, verdadeiro monumento cinematográfico apresentado no Festival de Cannes de 2006 numa cópia restaurada com o patrocínio de Martin Scorsese. Quando, na primeira metade da década de 40, são lançadas as bases do neo-realismo, isso decorre de uma outra dimensão vital: a capacidade de o cinema italiano funcionar como espelho multifacetado das convulsões históricas, contribuindo decisivamente para a formação de uma consciência nacional. Títulos como Roma, Cidade Aberta (1945) e Paisà (1946), ambos de Roberto Rossellini, ou Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio De Sica, são verdadeiras histórias de resgate, contribuindo para a superação emocional das muitas formas de destruição herdadas da guerra.
O cinema italiano manteve ao longo das décadas de 60/70, nomeadamente no mercado português, uma genuína popularidade. A comédia, mais ou menos cruzada com o melodrama, foi um género exuberante, através de vedetas como Vittorio Gassman, Marcello Mastroianni ou Claudia Cardinale e realizadores como Luigi Comencini, Dino Risi ou Mario Monicelli. Isto, claro, sem esquecermos que essa foi também a época em que, através de autores como Michelangelo Antonioni ou Federico Fellini, a produção italiana esteve na linha da frente das grandes transformações dos "novos cinemas".
Apesar do contributo de autores como Nanni Moretti, Giuseppe Tornatore ou Roberto Benigni, a história do cinema italiano das últimas décadas está irremediavelmente marcada pela mediocridade imposta pelas televisões (Fellini, em filmes como Ginger e Fred, de 1986, foi dos primeiros a retratar esse processo de degradação). Seja como for, nada pode apagar a vitalidade da sua história e do seu património.