1. José Pacheco Pereira é das poucas persona-lidades da cena política portuguesa sistematica-mente empenhado em referir, pensar e discutir a televisão — entenda-se: as formas & represen-tações televisivas como elemento fulcral do mundo em que vivemos. É uma excepção, inclusivé no interior da própria televisão (veja-se, por exemplo, como António Vitorino e Marcelo Rebelo de Sousa abordam a política como se vivêssemos num mundo predominantemente "literário", isto é, de dominância da palavra escrita e, mais especificamente, dos jornais).
2. A propósito da recente presença de Manuela Ferreira Leite no programa Grande Entrevista (RTP1), de Judite de Sousa, Pacheco Pereira publicou um notável artigo no jornal Público que, entretanto, já está disponível no seu blog, Abrupto [aviso: não será fácil seguir as considerações que se seguem sem conhecer o texto na íntegra]. O artigo discute as opções de realização do citado programa, nomeadamente na utilização sistemática dos grandes planos. No fundo, Pacheco Pereira lembra o óbvio. A saber: nenhuma opção de realização é meramente “descritiva”:
> Não havia ruga, veia, movimento do olhar que não enchesse o ecrã, e o mais cruel dos planos escrutinava aquele rosto para lhe mostrar a fragilidade. É o mais violento dos olhares que a televisão é capaz, aquele que não permite que nada escape, que desapareça toda a reserva do corpo na sua parte mais exposta, a face.
Ao mesmo tempo, porventura relativizando a contundência política da sua própria argumentação — ou melhor: não esquecendo a polissemia eventual, muitas vezes involuntária, de qualquer discurso —, Pacheco Pereira acaba por reconhecer a ambivalência potencial de qualquer linguagem (é por isso, insisto, que é importante conhecer o artigo na íntegra):
> Por tudo isto, agradeço aqui ao realizador da entrevista da RTP que não sei quem é. Fez a melhor das propagandas, mais rara, a mais difícil de fazer, a que não se encomenda, a que não se coreografa, a que não se imita. Fez da fragilidade uma força imensa.
3. Pacheco Pereira toca, assim, no cerne de um dos mais prementes problemas sociais e políticos dos nossos dias — e, muito em particular, do nosso tempo português. A saber: é imperioso discutir a televisão como um imenso poder de percepção de todos os aspectos da nossa existência, a ponto de muitos desses aspectos terem passado a existir apenas enquanto fenómeno televisivo. No limite (nada especulativo, mas muito objectivo), há quem utilize a televisão para normalizar o nosso próprio patriotismo: recorde-se, no Euro2004, a campanha das “bandeiras à janela” lançada por Luís Filipe Scolari e sustentada, por exemplo, na televisão, por Marcelo Rebelo de Sousa.
4. É interessante conhecer a reacção de Judite de Sousa às palavras de Pacheco Pereira. Assim, em declarações a Maria João Espadinha (Diário de Notícias), Judite de Sousa explica a questão por um equívoco, já que Pacheco Pereira “vê fantasmas onde eles não existem”. Cito um dos parágrafos do artigo:
> Explicando que "como coordenadora do programa" tem de defender "os colegas", Judite de Sousa acrescenta que "não há diferença alguma entre a realização desta entrevista e outras". "O grande plano é usado em todos os programas de entrevista", pois "transmite força e permite a proximidade com os telespectadores", diz a jornalista.
Há, aqui, um inevitável valor sintomático. Ou seja: Judite de Sousa, cuja seriedade de postura (e, neste caso, de resposta) não está em causa, de facto recusa enfrentar a cândida verdade tocada pela argumentação de Pacheco Pereira — a de que a televisão não é uma “reprodução” passiva seja do que for, mas sim uma poderosíssima máquina, não de “amostragem” do mundo, mas da sua permanente reconfiguração.
5. Na verdade, nem se trata de lembrar que qualquer entrevista televisiva tem também uma dimensão política. Os profissionais de televisão devem saber, têm a estrita obrigação de saber — e, ao sabê-lo, pensar —, que a mais acidental escolha de uma imagem (ou um som) implica uma relação política com os outros, os espectadores que todos somos. É louvável que Judite de Sousa surja na praça pública para discutir o sistema de trabalho em que se enquadra. Mas isso não passa de um ínfimo pormenor. O drama — comum aos que fazem e consomem televisão — é que chegámos a um ponto em que os telejornais dedicam mais tempo a um qualquer crime passional em Alguidares de Baixo do que à tragédia do Darfur, à tensão no Kosovo ou às eleições nos EUA. E, entenda-se, não é o tempo, enquanto mera medida, que está em causa — é o modo de ocupar esse tempo que importa discutir. Este é o país em que todos os dias corremos o risco de sermos massacrados com a notícia do último bocejo de Cristiano Ronaldo e, ao mesmo tempo (tempo...), a estreia do mais recente filme de Peter Greenaway é tratada com apoteótica indiferença. Talvez se Greenaway assinar pelo Manchester...
2. A propósito da recente presença de Manuela Ferreira Leite no programa Grande Entrevista (RTP1), de Judite de Sousa, Pacheco Pereira publicou um notável artigo no jornal Público que, entretanto, já está disponível no seu blog, Abrupto [aviso: não será fácil seguir as considerações que se seguem sem conhecer o texto na íntegra]. O artigo discute as opções de realização do citado programa, nomeadamente na utilização sistemática dos grandes planos. No fundo, Pacheco Pereira lembra o óbvio. A saber: nenhuma opção de realização é meramente “descritiva”:
> Não havia ruga, veia, movimento do olhar que não enchesse o ecrã, e o mais cruel dos planos escrutinava aquele rosto para lhe mostrar a fragilidade. É o mais violento dos olhares que a televisão é capaz, aquele que não permite que nada escape, que desapareça toda a reserva do corpo na sua parte mais exposta, a face.
Ao mesmo tempo, porventura relativizando a contundência política da sua própria argumentação — ou melhor: não esquecendo a polissemia eventual, muitas vezes involuntária, de qualquer discurso —, Pacheco Pereira acaba por reconhecer a ambivalência potencial de qualquer linguagem (é por isso, insisto, que é importante conhecer o artigo na íntegra):
> Por tudo isto, agradeço aqui ao realizador da entrevista da RTP que não sei quem é. Fez a melhor das propagandas, mais rara, a mais difícil de fazer, a que não se encomenda, a que não se coreografa, a que não se imita. Fez da fragilidade uma força imensa.
3. Pacheco Pereira toca, assim, no cerne de um dos mais prementes problemas sociais e políticos dos nossos dias — e, muito em particular, do nosso tempo português. A saber: é imperioso discutir a televisão como um imenso poder de percepção de todos os aspectos da nossa existência, a ponto de muitos desses aspectos terem passado a existir apenas enquanto fenómeno televisivo. No limite (nada especulativo, mas muito objectivo), há quem utilize a televisão para normalizar o nosso próprio patriotismo: recorde-se, no Euro2004, a campanha das “bandeiras à janela” lançada por Luís Filipe Scolari e sustentada, por exemplo, na televisão, por Marcelo Rebelo de Sousa.
4. É interessante conhecer a reacção de Judite de Sousa às palavras de Pacheco Pereira. Assim, em declarações a Maria João Espadinha (Diário de Notícias), Judite de Sousa explica a questão por um equívoco, já que Pacheco Pereira “vê fantasmas onde eles não existem”. Cito um dos parágrafos do artigo:
> Explicando que "como coordenadora do programa" tem de defender "os colegas", Judite de Sousa acrescenta que "não há diferença alguma entre a realização desta entrevista e outras". "O grande plano é usado em todos os programas de entrevista", pois "transmite força e permite a proximidade com os telespectadores", diz a jornalista.
Há, aqui, um inevitável valor sintomático. Ou seja: Judite de Sousa, cuja seriedade de postura (e, neste caso, de resposta) não está em causa, de facto recusa enfrentar a cândida verdade tocada pela argumentação de Pacheco Pereira — a de que a televisão não é uma “reprodução” passiva seja do que for, mas sim uma poderosíssima máquina, não de “amostragem” do mundo, mas da sua permanente reconfiguração.
5. Na verdade, nem se trata de lembrar que qualquer entrevista televisiva tem também uma dimensão política. Os profissionais de televisão devem saber, têm a estrita obrigação de saber — e, ao sabê-lo, pensar —, que a mais acidental escolha de uma imagem (ou um som) implica uma relação política com os outros, os espectadores que todos somos. É louvável que Judite de Sousa surja na praça pública para discutir o sistema de trabalho em que se enquadra. Mas isso não passa de um ínfimo pormenor. O drama — comum aos que fazem e consomem televisão — é que chegámos a um ponto em que os telejornais dedicam mais tempo a um qualquer crime passional em Alguidares de Baixo do que à tragédia do Darfur, à tensão no Kosovo ou às eleições nos EUA. E, entenda-se, não é o tempo, enquanto mera medida, que está em causa — é o modo de ocupar esse tempo que importa discutir. Este é o país em que todos os dias corremos o risco de sermos massacrados com a notícia do último bocejo de Cristiano Ronaldo e, ao mesmo tempo (tempo...), a estreia do mais recente filme de Peter Greenaway é tratada com apoteótica indiferença. Talvez se Greenaway assinar pelo Manchester...