Uma personalidade pode ser edificada a partir de uma série de referências que se tomam como matéria-prima que se parte, baralha, reordena. Mastiga, mas não deita fora... Matéria-prima que se dilui depois entre as marcas de identidade de alguém que dessa soma de referências parte então para a expressão de algo seu. MC Santi White, ou, como se lhe chama agora, Santogold, é exemplo evidente de como desta ética pode brotar uma identidade que, sem ofuscar o reconhecimento das memórias convocadas, se afirma mais presente e “sua” que apenas soma ordenada de boa pilhagem. Como a própria explica no seu álbum de estreia, as regras que aqui quebra valeram-lhe a visibilidade. Regras que ligam a multiculturalidade das cidades onde viveu (Filadélfia e, mais recente Nova Iorque, mais concretamente em Brooklyn) com memórias diversas da história da cultura pop, que passam pelo pós punk inglês (da intensidade eléctrica das Slits à integração ska/reggae de uns Musical Youth), pelos girl groups de Phil Spector, pelas genéticas do hip hop, tudo isto sem esquecer o presente indie rock que claramente escuta nuns Yeah Yeah Yeahs ou TV On The Radio. Antiga profissional da indústria discográfica, deu primeiros passos criativos ao colaborar na escrita e produção do álbum de estreia de Res. Passou depois pelos Stiffed, banda na qual revelou primeiras abordagens compósitas a heranças new wave e ska, construindo aí primeiros híbridos nos quais se descobriu criativamente. Andou pela estrada com Björk, com Lilly Allen, com M.I.A.. O seu single de estreia, Creator (em 2007), mergulho intenso na cultura de rua com tempero dancehall, valeu-lhe comparações a esta última, que se revelam agora difíceis de contrariar do discurso de apresentação do seu álbum de estreia. Santogold, contudo, revela mais frequente identificação com as raízes indie que com as ocasionais janelas hip hop igualmente levadas a cena. Santogold, todavia, não se encerra num caminho único e faz do seu álbum um dos mais surpreendentes e inesperados manifestos de contemporaneidade, revelando todas as canções uma clara consciência da sua identidade pop.
Santogold
“Santogold”
Lizard King Records / Edel
4 / 5
Para ouvir: MySpace
Entre a multidão de bandas da fornada de 80 que os últimos 15 anos viram regressar à actividade, contam-se por menos dos dedos de uma mão os casos em que o regresso trouxe mais música que mero afago para clientes de nostalgia em forma de canção. E se há caso notável entre estes muitos regressos, ele é o dos The Go-Betweens, banda australiana com notável percurso indie pop nos dias de 80, separados em Dezembro de 89, reunidos em 2000, gravando então três mangíficos novos álbuns. A morte, súbita, de Grant McLennan, colocou inesperado ponto final a uma nova etapa de uma carreira que, como se escutara no ainda recente Oceans Apart (2005), tinha ainda pela frente muitas histórias para transformar em canções. A morte de McLennan deixou Robert Forster sem o seu parceiro criativo. Apesar de assinarem em conjunto, as canções não escondiam quem as escrevera, Forster mais irónico, crítico, recorrendo a metáforas invulgares, McLennan por sua vez mais directo nos retratos, mais atento a questões da psicologia... A soma do trabalho de ambos era a força motriz da identidade dos The Go-Betweens. E a verdade é que nunca a solo qualquer deles atingiu os patamares que partilharam em grupo. The Evangelist, que integra as quatro últimas canções em que McLennan estava a trabalhar, é quase como o epílogo na obra conjunta que o tempo não permitiu terminar. O disco convoca a presença da baixista e do baterista dos Go Betweens, assim como chama aos arranjos de cordas Audrey Riley, cuja história de colaboração como o grupo remonta a meados de 80. Apesar de centrado na memória de Grant McLennan, The Evangelist não é uma elegia. Celebra o amigo em It Ain't Easy, medita sobre a sua perda em From Ghost Town, e atinge o pico emocional em Demon Days, a última canção de McLennan, cuja forma Forster terminou. A música, que alterna entre um discreto paisagismo acústico e ocasional festa para pequeno combo de amigos, é discreta e nunca ceifa protagonismo às palavras e histórias que se cantam. É o último capítulo para os Go Betweens. E o melhor dos cinco álbuns a solo já editados por Robert Forster.
Robert Forster
“The Evangelist”
Tuition / Ananana
4 / 5
Para ouvir: Site oficial
Muitos certamente escutámos pela primeira vez as suas canções na banda sonora do soberbo Shortbus, de John Cameron Mitchell. Ele chama-se Scott Matthew (não confundir com Scott Matthews, que o “S” no fim do nome pode fazer toda a diferença), e acaba de editar, discretamente, o seu álbum de estreia. Como um Richard Swift ou um Faris Nourallah, Scott Matthew é um cantautor de personalidade vincada, mais concentrado na construção da sua obra que na sua mediatização. Afastado das rotas e destinos de grande parte das atenções pop, o seu álbum de estreia corre o risco de passar a Leste das atenções. Não o merece. Scott Matthew não é totalmente um ilustre desconhecido. Australiano de berço, reside em Nova Iorque e aí já militou em duas bandas (ambas de visibilidade limitada, é verdade). Mais conhecido será, talvez, o seu trabalho para bandas sonoras de filmes de anime. Shortbus, contudo, foi a porta para a descoberta por muitos da sua personalidade retratista e vivencial. Canções como In The End ou Surgery (que reaparecem agora neste disco em versões menos intensas, ou seja, despidas da carga épica das leituras levadas ao grande ecrã) são indicador da personalidade sensível, da voz delicada e da opção por instrumentação discreta que domina todo este disco. A voz (e a sua relação com a escrita) é protagonista num álbum de canções que pedem silêncio e atenção. Arranjos simples, directos, com a intensidade de canções de embalar, compõe um disco que pede a descoberta de um nome que vai valer a pena acompanhar...
Scott Matthew
“Scott Matthew”
Sleeping Star
3 / 3
Para ouvir: MySpace
Em Janeiro de 2006 Andy McCluskey anunciou publicamente o regresso à actividade dos Orchestral Manouevers In The Dark (OMD), separados dez anos antes. O grupo, uma das mais importantes forças da primeira geração pop electrónica britânica, regressava com o intuito de apresentar ao vivo o seu álbum Architecture & Morality, de 1981, habitualmente descrito como o seu álbum de referência (estatuto que, merecidamente, deveria ser partilhado com o sucessor Dazzle Ships, de 1983). Paul Humpries, a outra metade criativa do grupo aceitou o desafio. A eles juntaram-se os demais elementos que compunham os OMD antes da sua reduzção ao duo fundador, o que aconteceu em finais de 80. A digressão foi um caso de sucesso, acompanhando em palco a edição de uma versão remasterizada (e com extras) do álbum de 1981. O acolhimento dado às memórias mais significativas da obra dos OMD motivou não apenas a reedição, já este ano, de uma versão igualmente remasterizada do álbum Dazzle Ships como sugeriu que era chegada a hora do grupo lançar o seu primeiro disco ao vivo. Assim se explica a génese de OMD Live: Architecture & Morality & More, que agora chega aos escaparates. Como o tíltulo sugere, o alinhamento começa por evocar, de fio a pavio, o álbum histórico de 1981, juntando depois uma mão cheia de clássicos pop (como Locomotion, Enola Gay, Electricity ou Sailing On The Seven Seas), com espaço ainda para a surpresa na evocação de Romance Of The Telescope, extraído de Dazzle Ships. Não se trata de um registo capaz de mudar a história da banda. Nem se trata de uma reinvenção das canções que, por si, ganhasse estatuto de instante de reinvenção criativa. De resto, parece aceitar apenas o facto de ser simples retrato de um momento em que a memória, como o era, ganha vida e chega ao presente. Vale por isso. Nada contra.
Orchestral Manouevers In The Dark
“OMD Live: Architecture & Morality & More”
Eagle Records / Edel
3 / 5
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Os Guillemots devem ser uma das bandas mais sobrevalorizadas do momento. Chamaram, de facto, atenções quando, para surpresa de tudo e todos, foram nomeados para o Mercury Prize em 2006. Tudo pelos lindos olhos de Through The Windowpane... O disco era até um interessante ponto de partida. Uma espécie de mash up de referências, cruzando ideias, sons, escolas, memórias... Ficou, naturalmente, a vontade de saber mais. E eis que, dois anos depois, novo álbum entra em cena. Red mostra quão perigosos podem, por vezes, ser os elogios. Sobretudo quando a banda ainda busca identidade e se vê, de repente, julgada a acreditar que a concentração de opiniões num mesmo sentido poderá indicar que aquela é a rota a seguir. Os elogios, em geral, falavam da espantosa variedade de referências convocadas ao álbum de estreia. E da forma como o grupo as conseguia enquadrar numa colecção de canções. Em Red, resolvem fazer mais (do mesmo). Muito mais. E afogam o disco em ideias, em heranças, em sons, em arranjos que, de tão maiores que as canções, as acabam por transformar em engarrafamento sem solução. Daqueles em que se tira a chave da ignição e regressa a casa a pé. O single de avanço mostrava já, no limite das roupas que um corpo pode vestir, uma canção que não escondia o gosto pelo sentido da pop mais barroca de meados de 80. O resto do alinhamento insiste na mesma política de mais e muito mais, entre trapinhos e bugigangas, oferecendo surpresas a cada curva, tantas que rapidamente se perde a capacidade de as saborear. O disco esgota a atenção. Perde sentido entre tanto som. E, incapaz de o usar em favor de uma ideia, acaba deslaçado, desinteressante, maçador.
Guillemots
“Red”
Polydor/Universal
1 / 5
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Também esta semana:
Animal Collective (EP), The Hacker, Isobel Campbell / Mark Lanegan, Marc Almond (EP), Soft Cell (reedição), Tokio Police Club, Future Sound of London (EP collection), Elvis Costello, Daniel Lanois (DVD), UHF (reedição), Petrus Castrus (reedição), Quinteto Académico + 2 (reedição), Telectu (reedição), Quarteto 1111 (reedição)
Brevemente:
12 de Maio: Bomb The Bass, Martha Wainwright, Mesa, Martina Topley Bird, Death Cab For Cutie, White Williams, Liquid Liquid (reedição)
19 de Maio: The Ting Tings, Paul Weller, Pogues, Scarlett Johansson, Sparks, Mudhoney, Dr Hook (reedições)
26 de Maio: Spiritualized, Weddinng Present, Futureheads, Yazoo (caixa + reedições), Byrds (reedições), Replacements (reedições), Tangerine Dream (antologia), Zutons, Philip Glass (opera)
Maio: Duran Duran (reedições – três primeiros álbuns numa caixa), NIN, Mountain Goats, Supremes (raridades), Otis Redding (reedições), Philip Glass (archives – vol 3),
Junho: Dead Can Dance (reedições), Ladytron, Radiohead (best of), Coldplay, Joan As Policewoman, Fratellis, Infadels, Aldina Duarte, David Bowie (reedição), U2 (reedições)