Concluímos hoje a publicação da versão integral de uma entrevista com Xana e Flak, dos Rádio Macau que serviu de base a um artigo publicado na edição de 31 de Março do DN.
Dedicam muito tempo a um mesmo disco como ouvintes?
X - Sim. Com o último do Robert Wyatt ainda não comprei outro porque o estou a ouvir. E descubro sempre coisas... É uma outra relação. Não quer dizer que faça isto com todos os discos. É um prazer. O prazer de ouvir.
Ao longo dos anos, com que discos gastaram mais tempo?
X – Na fase em que vivíamos juntos a música, naquela casa, era um ritual. Se havia um amigo que tivesse um disco novo, convidávamos mais amigos para o ouvir. Éramos umas 20 pessoas. Ouvíamos, discutíamos, ouvíamos as letras.
F – Eu comecei a ouvir música muito cedo. Aos 10 ou 11 anos... O meu avô tinha um gravador de bobinas com música. Desde jazz a fado... E naquela altura o que ouvia mais, e ainda hoje gosto muito, era o Cantigas do Maio, do Zeca Afonso, os primeiros do José Mário Branco, o Sobreviventes do Sérgio Godinho. E por lá estava também o The Times They Are A-Changing, do Bob Dylan. Não tinha grande variedade, mas aqueles foram consumidos. A partir daí apanhei muito ainda o rock progressivo. O primeiro disco que comprei foi o Atom Herat Mother dos Pink Floyd. Depois passei essa fase toda...
X – Eu era mais nova e o Flak mostrava-me imensa música. Lembro-me dos The Who.
F – Tinha o Live At Leeds... Naquela altura eu também tocava blues. Sempre fui muito curioso com o que me era estranho. Naquela altura ouvia, por puro espanto, o Ege Bamyasi, dos Can. Mas naquela altura não sabia porque gostava daquele disco. Gosto de discos que possam ter sido feitos há 30 anos mas que sejam intemporais. Como o Berlin ou o Transformer, do Lou Reed. São essas coisas que marcam.
X – Aos 13 anos comecei a ouvir música e fiz uma selecção rápida. Em dois ou três anos ouvi muita música. Não gostava muito de rock de fusão, sinfónico... E identifiquei-me imediatamente com a pop. E com os Velvet Underground, os Television, a Patti Smith.
F – E eu apanhei essa transição. Que foi super-interessante. Os primeiros discos dos Talking Heads... Adoro os Devo...
X- E depois aquela trilogia: Bowie, Iggy Pop e Lou Reed.
Quando, depois, começaram a fazer a vossa música fizeram-no, apesar de muitas novas referências em inglês, em língua portuguesa...
F – Nunca questionámos isso. A minha formação até são os discos em português.
X – Também aconteceu em Espanha e em França. A Europa tentava aprioptriar-se de um conceito universal, que é a pop, mas na sua identidade. Não tinha de ser em inglês. O conceito de pop não tem uma língua. É uma atitude.
F – E no meio dos anos 60 aconteceu o mesmo com os tropicalistas no Brasil. Foi uma reacção.
Era uma auto-descoberta essa invenção pop em português nos inícios de 80?
F- Sim, e de uma forma um bocado naif. Havia acesso à informação... Os Talking Heads, os Clash... Eram coisas que ouvíamos no programa do António Sérgio... Íamos absorvendo essas influências, mas de uma forma mais naif... E foi isso que fez com que bandas como os Rádio Macau, os GNR, os Pop Dell’Arte, digerissem as coisas daquela maneira.
X – Não acho que seja assim tão naif. Havia uma apropriação pessoal, autêntica. É mais autenticidade que ingenuidade.
F – Não é uma ingenuidade intelectual. É uma ingenuidade técnica. O ouvir e querer fazer parecido. Mas como não se sabe, sai outra coisa. A procura não é ingénua. Essas bandas podiam ser tecnicamente muito simples, mas viviam em ambientes com alguma tradição. Quando iam para estúdio já iam com um produtor que sabia o que fazer. Nós chegávamos ao estúdio e o técnico de som sabia tanto como nós.
Porque não se repetiu esse viveiro tão intenso de ideias tão versáteis na pop portuguesa de meados de 80 para cá?
X – Por isso digo que não era tanto só da ingenuidade. Havia um sentido de querer ser autêntico. Havia o Prémio da Originalidade nos concursos do Rock Rendez Vous. Promovia-se essa originalidade. Depois passamos para os anos 90, para o pós-modernismo, para as estéticas do efémero, onde não é novo o que é novo. Vive-se outra atitude, que atinge a pop e a nossa realidade. Ganha a reciclagem, que penso que é uma assimilação positiva. Perde noutros domínios. Mas não é melhor nem pior.
F – Nos anos 90 a música que cá se fez aproximou-se mais aos modelos que as pessoas ouviam.
X- Propositadamente há mais imitação. Samplar é uma atitude. O retirar, a cópia e o usar. É nosso, não é de ninguém. Mas não vamos falar de comparação de valores.