Lento, reflectido, discretamente arredado dos olhares curiosos da voraz fome de informação que caracteriza o nosso tempo, o processo de criação do terceiro álbum dos Portishead foi imune a pressas, a ansiedades, a agendas definidas por terceiros. Alheou-se das tendências. Olhou para dentro, mas resistiu até à eventual tentação da repetição de (boas) fórmulas outrora ensaiadas. Firme, investiu naquilo que, na verdade, desde o início caracterizou uma das mais marcantes bandas inglesas nascidas na década de 90, ou seja, a exploração do som, o ensaio da ideia, tudo ao serviço de um fim maior: a canção. Dez anos depois de Roseland NYC (o álbum ao vivo que serviu de aclamação a uma banda que então era já vista como referência maior dos anos 90), o regresso faz-se com algo completamente diferente. Mas que, na essência, em nada foge a uma ética de trabalho que os acompanha desde os primeiros dias. O sucessor de Dummy e de Portishead não repete o intimismo trip hop das primeiras canções nem a melancolia eloquente e quase sinfonista das que se seguiram. O som é tutano do qual irradiam ideias. Umas essencialmente cenográficas, definindo paisagens de arrepiante e contido minimalismo, despojadas do supérfluo, do excessivo, por vezes mesmo do conforto, mas onde a surpresa se descobre em sucessivas audições ao microscópio. Outras claramente melodistas, definidas aqui por uma voz que a si chama a condução dos acontecimentos que definem a matéria viva das canções. Tecnologia e carne em diálogo próximo, íntimo, curioso. Como que medindo forças, mais em busca de simbioses, de partilhas, que receando um o domínio do outro. Apesar das evidentes diferenças (e naturais semelhanças) com o seu passado nos discos de 90, Third inscreve nova etapa numa mesma demanda por uma nova forma de abordar a melancolia na canção, usando o ruído, a máquina, a textura, como elementos de protagonismo na construção de um corpo que concentra na voz a expressão maior da condução da sua carga emotiva. A máquina vive. Mas quem sente é o homem.
Portishead
“Third”
Go Discs! / Universal
5 / 5
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Os dois álbuns já editados pelos Arctic Monkeys já tinham deixado claros sinais do talento pop de Alex Turner, a sua principal força criativa (e voz). Mas agora, ao primeiro disco do projecto pararelo que o junta a Miles Kane (dos The Rascals), o que era “apenas” um estreante bem sucedido, confirmado ao segundo disco, torna-se alvo da concentração das atenções dos cultores de uma pop que, sendo presente, não ignora a memória. The Age Of Understatement, álbum de estreia dos Last Shadow Puppets é uma das mais agradáveis surpresas que a pop inglesa nos deu desde o álbum de estreia dos Franz Ferdinand. Trata-se de um inesperado manifesto de fulgor clássico, aliando uma escrita ágil (e eficaz) a um jogo vocal interessante, colocando sempre a canção na meta de cada instante. Como se a cada tema a gravar fosse destinada segunda vida em single. Na base da surpresa que se revela nas 12 canções de um álbum com rara capacidade de entender o valor do tempo de atenção do ouvinte (não abusando, portanto, da sua disponibilidade) mora um conjunto de referências que frequentemente escapam a muitos militantes da mesma geração indie a que pertencem Alex Turner e Miles Kane. Scott Walker, Ennio Morricone, Andy Williams, David Bowie (em finais de 60 e inícios de 70) e o imaginário das canções de 60 e 70 dos filmes James Bond (ou seja, os dias melhores de John Barry) são ponto de partida para um projecto que, mesmo sendo na origem uma visão de Alex Turner, mostra inteligente política de abertura à presença de colaboradores, cada qual adubando à sua maneira o campo que acaba depois por florir belo e convidativo. Além de Miles Kane (que já havia colaborado como guitarrista no segundo álbum dos Arctic Monkeys), entram em cena o produtor James Ford (Simian Moblie Disco) e o violinista Owen Pallett (Final Fantasy), este último o responsável pelos arranjos épicos, sinfonistas (que chamaram a estúdio a London Metropolitan Orchestra), que são moldura fulcral para as canções deste disco. Em conjunto fazem de The Age Of Understatement um dos mais suculentos monumentos de revisitação da memória pop de 60 sem nunca convocar a nostalgia como caução. Nem podiam. Aos vinte poucos, quando muito, lembrar-se-iam de ouvir os Blur contra os Oasis nos dias de escola...
The Last Shadow Puppets
“The Age Of Understatement”
Domino / Edel
4 / 5
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Chegam de Toronto e, apesar de um início de carreira (há perto de cinco anos) definido através das normas de funcionamento da geração Internet, optaram por dar vida a uma aventura em estilo “clássico”, ou seja, com contrato com uma editora, e com primeiro álbum editado em CD e vinil... Os Crystal Castles são um duo. Ele, Ethan Kath, tem assinado remisturas para bandas como os Klaxons, Bloc Party, The Whip ou Liars. Ela, Alice Glass, é uma vocalista com gosto pela criação de personagens, ora assumindo o papel da guerreira, ora o do anjo assombrado. Em conjunto, propõem no seu álbum de estreia um interessante manifesto pela redescoberta dos mais simples e directos modos de expressar ora a ansiedade, ora os prazeres, da juventude, através de máquinas que colocam ao serviço da canção. Os textos que têm (sistematicamente) elogiado a estreia em álbum dos Crystal Castles falam habitualmente do álbum usando termos e nomes como nu-rave, Soft Cell, Poly Styrene (a vocalista dos X-Ray Spex), jogos de computador, entre outros como termos de comparação. Há, contudo, um termo que escapa a muitas descrições mas que se revela, afinal, estrutural a todo o disco: electroclash. Sim, electroclash, despido à essência do convocar de modelos electro pop vintage para, sob matriz lo-fi, construir uma nova realidade com sabor a fim de noite. Sem o glitter dos Fischerpooner. Sem o ascetismo de uma Miss Kittin. Sem a festividade de um Tiga. Com menos maquilhagem, menos pose chique, mais sentido de urgência... Enfim, mais... punk. Entre furacões de intensidade que pontualmente convocam memórias dos DFA 1979 (samplados numa das faixas), instrumentais com sentido melodista de canção e ocasionais momentos pop (onde revelam incrível capacidade em construir refrões), Crystal Castles é curioso parceiro de uma identidade pop electrónica que aborda, sob os códigos habituais na música que faz a festa nocturna, um sentido de desencanto e solidão que, recentemente escutámos também nuns Chromatics. A descobrir!
Crystal Castles
“Crystal Castles”
Lies
4 / 5
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Madonna devia ter aprendido a lição com Bedtime Stories, tropeção r'n'b de 1994 que lhe deu um dos piores álbuns de toda a sua obra, abrindo terreno para uma sucessão de tiros ao lado na forma de singles de inspiração menor. A pintura salvou-se com Ray Of Light, que, nos antípodas desse álbum de 1994 lhe deu, em 1998, aquele que ainda hoje é o seu melhor disco. Em 2005 novo pico de forma, com o magnífico Confessions On A Dance Floor, incrivelmente capaz de juntar a um momento presente a genética da música de dança que se escutava quando se revelara na Nova Iorque de inícios de 80. Seguiu-se nova e triunfal digressão, depois, as surpresas: o abandonar da Warner (junto da qual havia editado desde os primeiros dias) e o chamar de nova equipa de colaboradores para um novo álbum de originais. Justin Timberlake, Timbaland, Kanye West, Pharell Williams... Ou seja, os pesos pesados da pop da presente década, já com farta sementeira de colaborações e mais suculenta ainda colheita de trunfos. 4 Minutes, o soberbo single de avanço do álbum (com Timberlake e Timbaland), acalmou as suspeitas (do costume). Hard Candy, contudo, mostra que as suspeitas, desta vez, eram fundamentadas, reduzindo Madonna a uma protagonista num filme que, mesmo com argumento seu, tem a realização nas mãos de terceiros. Madonna sempre sobe jogar o jogo do vampiro. Sempre soube escolher os parceiros de trabalho, encontrando-os na linha da frente da invenção dos acontecimentos. Timbaland, Timberlake, Pharell Williams e Kanye West, contudo, têm algo que os separa de figuras como William Orbit, Mirwais, Jellybean Benitez ou Stuart Price, “parceiros” de tempos idos: são estrelas planetárias, com sucesso global já firmado e reconhecido antes do beijo de... Madonna. Ou intimidada (não é coisa habitual), ou apressada ou menos inspirada, Madonna pouco de realmente novo mostra de si nas novas canções (para lá de eventuais marcas vivenciais), repetindo frequentemente fórmulas já escutadas. O que há de realmente novo em Hard Candy são as marcas de (competente) produção da nova equipa, a sua forma de integrar r&b e hip hop numa matriz pop. Quando a alma pop de Madonna fala acima dos novos parceiros (como em Miles Away ou Voices) a “velha” estrela brilha. Mas há um nevoeiro, que não apaga uma ideia de espartilho voluntário, a toldar brilhos de outrora. Que Stuart Price ou William Orbit compreenderam, respeitaram, valorizaram, e transformaram em momentos de rara inspiração pop. Não é o caso, desta vez.
Madonna
“Hard Candy”
Warner Bros
3 / 5
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Antes de mais, esclareça-se que estamos perante um “resumo” e não um “best of”. O discurso de marketing que tem acompanhado o lançamento desta antologia de oito anos da vida de Balla tem, como o sarcasmo da frase anterior sugere, perdido mais tempo a justificar o porquê da edição que, na verdade, a falar deste espaço que, entre as mil e uma experiências musicais de Armando Teixeira, parece ser aquele que corresponde à melhor resposta a um sonho antigo de concretização de uma ideia pop muito pessoal. É verdade que é ainda cedo para “resumir” uma obra num disco que seleccione os temas mais representativos. E se a ideia era a de dar a conhecer o que se havia passado antes do brilhante A Grande Mentira (2007), porque não uma reedição integral (até mesmo em CD dois em um)? É certo que Balla (2000) e Le Jeu (2003) saíram por etiquetas distintas, mas nada de impeditivo para um “retrato” mais esclarecedor (e não “resumido”) da obra a (re)descobrir. Adiante, então. Como acima se sugeria, em A Grande Mentira, Armando Teixeira atingiu a definição, antes sonhada em Boris Ex Machina e nas primeiras manifestações de Balla, de uma ideia pop elegante, capaz de citar a eloquência de tradições clássicas sem nunca esquecer, aliando-as a uma consciência do hoje em que tudo acontece. De Gainsbourg aos mais variados sabores dos prontuários lounge, sem esquecer travo brasileiro em tempos mais remotos, Balla evoluiu de uma espécie de olhar crítico (e interessado) pelo que nomes como Jay Jay Johansson ou De-Phazz nos revelavam em finais de 90, a personalidade (melómana) de Armando Teixeira acabando por emergir acima da trama das comparações para afirmar nesta música, em pleno, o seu sonho pop. Resumo (2000-2008), que inclui apenas um tema inédito (na melhor tradição pop electrónica), sugere etapas desse percurso e, na verdade, confirma a solidez da colheita 2007 perante os ensaios recordados em discos anteriores. Não é, de facto, um best of. Para o ser teria de conter no alinhamento temas como Ela ou Un Jeu Courtois. O alinhamento, aparentemente aleatório, não sabe contar uma história, limitando-se a juntar temas por critérios que parecem ir pouco além do “esta fica bem depois daquela”. Se a ideia do “resumo” era a de mostrar, a quem não conhecia Balla, o que foi a história até aqui, outro alinhamento (cronológico) seria mais esclarecedor. Assim como não teria sido mal pensado um texto capaz de suportar pelas palavras as histórias das canções que aqui se juntam e daquele que lhes deu vida. Em suma: belas canções desaproveitadas em antologia que deixa muito a desejar...
Balla
“Resumo (2000-2008)”
Chiado Records / SonyBMG
3 / 5
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Também esta semana:
Robert Forster, Yundi Li/Ozawa (Prokofiev), Jonathan Richman, Alabama 3, Four Tet, Nils Petter Molvaer, ABC, Tindersticks, M83, Air (reedição), Jamie Lidell, Cajun Dance Party
Brevemente:
5 de Maio: Animal Collective (EP), The Hacker, Isobel Campbell / Mark Lanegan, Marc Almond (EP), Soft Cell (reedição), Tokio Police Club, Future Sound of London (EP collection), Elvis Costello, Daniel Lanois (DVD), Yazoo (reedições), OMD (live)
12 de Maio: Bomb The Bass, Martha Wainwright, Mesa, Martina Topley Bird, Death Cab For Cutie
19 de Maio: The Ting Tings, Paul Weller, Pogues, Scarlett Johansson
Maio: Spiritualized, (reedições), UHF (reedição), Petrus Castrus (reedição), Quinteto Académico + 2 (reedição), Telectu (reedição), Quarteto 1111 (reedição), Duran Duran (reedições – três primeiros álbuns numa caixa), OMD (live), NIN, Mountain Goats, Supremes (raridades), Otis Redding (reedições), Philip Glass (archives – vol 3), Wedding Present
Junho: Dead Can Dance (reedições), Ladytron, Radiohead (best of), Coldplay, Joan As Policewoman, Fratellis, Infadels
PS. A crítica aos Portishead é uma versão editada de um texto publicado no suplemento IN, da revista NS.