Entre as celebrações do 250º aniversário da morte de Bach, assinalado no ano 2000, a International Bachakademie Stuttgart desafiou quatro compositores a criar uma nova “Paixão”. O projecto Passion 2000 nasce assim da vontade de redescoberta, no presente, de um género musical no qual Bach inscreveu paradigmas, convocando o trabalho de Wolfgang Rihm, Sofia Gubaidulina, Tan Dun e Osvaldo Golijov. Rhim, sobre um texto de Paul Celan, compôs Deus Passus (Fragments Of a St Luke’s Passion), no qual transportou para as expectativas do presente as marcas expressas na memória do texto bíblico, colocando o sofrimento da humanidade junto ao de Deus. Gubaidulina, na sua Johannes Passion, enraizou a genética da escrita musical na tradição ortodoxa russa. Tan Dun, na Water Passion After St Mattthew, procurou marcas de arcaísmos, conferindo ao texto (e à música) uma dimensão atemporal. Golijov, de todos estes compositores hoje o mais representativo do novo século cuja aurora então também se assinalava, projectou nesta La Pasión Según San Marcos as marcas de uma identidade que cruza mundos distintos e que não se deixa rotular pelas características de uma cultura apenas.
Homem do mundo, expressão que junta traços da sua identidade familiar, vivencial e profissional, Osvaldo Golijov trouxe ao texto de São Marcos traços das culturas sul-americana, cubana e judaica, além de elementos naturalmente herdados de tradições da música erudita ocidental. Nesta sua “Paixão” Jesus não é um europeu de pele branca. No booklet da primeira gravação desta obra, Golijov explica que, contra as imagens que conhecia da pintura renascentista e barroca, o “seu” Jesus é um homem de pele escura. “Estive em Jerusalém e em Belém, vi as pessoas que ali habitam, e claramente não se parecem nada com as que vemos naquelas pinturas italianas”, explica. A Pasión Según San Marcos projecta a acção (e a memória bíblica) num cenário de rua, algures na América do Sul do presente, na qual as culturas herdadas de Espanha e de África (via escravatura) se cruzam. Dominada por lamentações provocadas por várias etapas de sofrimento em dois mil anos de história a obra apresenta-se mais como uma expressão de humildade que de dor. Elementos rítmicos e expressões várias de culturas musicais latino-americanas (onde não falta um “ramo” de salsa) são parte da caracterização de uma obra que, como muita da música de Golijov, não teme o expressar das ligações ao mundo da música popular, particularmente as expressões folk. Aqui, afinal, apenas mais uma manifestação de uma tradição que conhecemos já de Grieg a Waughan Williams, apenas com outras geografias musicais no cardápio a sugerir a clara diferença.
Luciana Souza, a cantora brasileira que recentemente Osvaldo Golijov convidou a protagonizar a cantata Oceana, dá voz a esta gravação com oito anos (pela Hänssler Classic), que junta vários outros músicos e grupos sul-americanos, sob direcção de Maria Guinard. Neste momento Golijov prepara a edição de uma nova gravação desta obra, a lançar ainda este ano no catálogo da Deutsche Grammophon.