sábado, março 29, 2008
Fragmentos de solidão
Há um filme simplesmente imperdível nos ecrãs portugueses. E chama-se Os Fragmentos de Tracey. O efeito que deixa no espectador quase lembra o de Tarnation, de Jonathan Caouette. Mas desta vez, no lugar da autobiografia, com tempero narcísico, do jovem norte-americano, estamos contudo no domínio da ficção, a história partindo directamente do romance The Tracey Fragments, da escritora e dramaturga canadiana Maureen Medved. Em traços largos, conhecemos Tracey Berkowitz, apenas vestida com um lençol, no banco de trás de um deserto autocarro em aparente distante fim de linha... Tracey procura o irmão, mais novo, desaparecido... As pistas dadas à partida não mostram muito mais, desafiando o espectador a juntar os fragmentos que depois irá recolher. Fragmentos tão dispersos, uns mais panorâmicos, outros de pormenor, tal como aqueles em que se divide o ecrã, que raramente permite o monopólio de uma só imagem. Este dispositivo, a literal fragmentação do ecrã, que nos sugere a observação (e consequente exercício de colagem) de vários olhares sobre um mesmo objecto, espaço ou contexto, é marca formal que o realizador Bruce McDonald toma como elemento de identidade desta narrativa. Porém, nunca o dispositivo surge como elemento perturbador da construção da história. Nunca se assume como protagonista, servindo antes, de uma forma peculiar, desafiante, a narrativa que nunca deixa de relatar. E que, como se frisou antes, é, tal como as imagens, um conjunto de fragmentos que cabe ao espectador ordenar, unir, descodificar... Na essência descobre-se uma visão crua, mesmo cruel, do universo teenager, das relações familiares ao espaço da escola, dos afectos à solidão. Tudo isto mais uma espantosa interpretação de Ellen Page (Tracey). E uma soberba banda sonora essencialmente dominada pela música dos Broken Social Scene, na qual pontuam ainda momentos ao som de Peaches, ou uma versão do clássico Horses, de Patti Smith, por Elisabeth Powell, dos Land Of Talk.