De uma maneira ou de outra, a tradição do cinema de terror passa por um jogo de contrastes e ambivalências entre o visível e o invisível, o que tem forma e o que é informe. The Mist/Nevoeiro Misterioso é um filme que refaz esse jogo de modo brilhante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Março), com o título 'O Que É a Democracia?'.
Provavelmente, nas últimas décadas, não existe escritor mais frequentemente adaptado ao cinema (e televisão) que Stephen King. Muitas vezes, há que reconhecê-lo, com resultados rotineiros ou mesmo desastrosos; outras dando origem a obras de excepção (lembremos o caso modelar de The Shining, filmado em 1980 por Stanley Kubrick). Frank Darabont é, por assim dizer, um cineasta reincidente no universo de King. Depois das adaptações de The Shawshank Redemption/Os Condenados de Shawshank (1994) e The Green Mile/À Espera de um Milagre (1999), Darabont surge agora com Nevoeiro Misterioso, versão inesperada, desconcertante e em muitos aspectos fascinante de The Mist, novela originalmente publicada em 1980.
Convenhamos que as meras peripécias desta história de uma cidadezinha invadida por um nevoeiro que transporta monstros podiam servir para mais um banalíssimo filme de terror, igual a tantas dezenas que por aí andam, tentando compensar a falta de imaginação com a proliferação de criaturas bizarras e mais ou menos digitais. Claro que o filme não se coíbe de utilizar alguns modernos recursos dos efeitos especiais para dar “corpo” às entidades ameaçadoras trazidas pelo nevoeiro. A diferença essencial que Darabont introduz não tem a ver com as aplicações da tecnologia mas, em primeiríssimo lugar, com a simples arte de contar uma história (ele acumula, aliás, as tarefas de realização e escrita de argumento).
De forma algo insólita, o filme intensifica o efeito claustrofóbico do universo de Stephen King, quanto mais não seja porque o essencial da acção decorre no interior de um supermercado onde as personagens se refugiam do nevoeiro. Naquele espaço de bizarra “transparência” (até pela sua imensa fachada de vidro) assistimos ao desenvolvimento de uma teia dramática que, por assim dizer, coloca à prova a própria coerência de uma pequeníssima, mas muito típica, comunidade. A pouco e pouco, a ameaça à estabilidade das relações sociais conduz a uma estranha e perturbante inquietação. A saber: até que ponto os valores dessas relações são produto de uma convicção colectiva ou meros artifícios sem consistência prática? Ou ainda: o que é, e como funciona, a democracia?
Os efeitos simbólicos são tanto mais subtis quanto Darabont sabe colocar em jogo algumas componentes (desde o poder da instituição militar até aos efeitos da alienação religiosa) que, de forma contida mas muito incisiva, ecoam alguns dramas da América contempo-rânea. De forma sugestiva, talvez possamos resumir o impacto de Nevoeiro Misterioso como uma fusão da inquietude simbólica de Os Pássaros (1963) [cartaz], de Alfred Hitchcock, com a angústia existencial de The Thing/Veio do Outro Mundo (1982) [imagem em baixo], de John Carpenter. No campo específico do género de terror, já há algum tempo que não víamos, assim, um trabalho tão rico de encenação e, ao mesmo tempo, tão consciente da tradição que o enquadra.
Provavelmente, nas últimas décadas, não existe escritor mais frequentemente adaptado ao cinema (e televisão) que Stephen King. Muitas vezes, há que reconhecê-lo, com resultados rotineiros ou mesmo desastrosos; outras dando origem a obras de excepção (lembremos o caso modelar de The Shining, filmado em 1980 por Stanley Kubrick). Frank Darabont é, por assim dizer, um cineasta reincidente no universo de King. Depois das adaptações de The Shawshank Redemption/Os Condenados de Shawshank (1994) e The Green Mile/À Espera de um Milagre (1999), Darabont surge agora com Nevoeiro Misterioso, versão inesperada, desconcertante e em muitos aspectos fascinante de The Mist, novela originalmente publicada em 1980.
Convenhamos que as meras peripécias desta história de uma cidadezinha invadida por um nevoeiro que transporta monstros podiam servir para mais um banalíssimo filme de terror, igual a tantas dezenas que por aí andam, tentando compensar a falta de imaginação com a proliferação de criaturas bizarras e mais ou menos digitais. Claro que o filme não se coíbe de utilizar alguns modernos recursos dos efeitos especiais para dar “corpo” às entidades ameaçadoras trazidas pelo nevoeiro. A diferença essencial que Darabont introduz não tem a ver com as aplicações da tecnologia mas, em primeiríssimo lugar, com a simples arte de contar uma história (ele acumula, aliás, as tarefas de realização e escrita de argumento).
De forma algo insólita, o filme intensifica o efeito claustrofóbico do universo de Stephen King, quanto mais não seja porque o essencial da acção decorre no interior de um supermercado onde as personagens se refugiam do nevoeiro. Naquele espaço de bizarra “transparência” (até pela sua imensa fachada de vidro) assistimos ao desenvolvimento de uma teia dramática que, por assim dizer, coloca à prova a própria coerência de uma pequeníssima, mas muito típica, comunidade. A pouco e pouco, a ameaça à estabilidade das relações sociais conduz a uma estranha e perturbante inquietação. A saber: até que ponto os valores dessas relações são produto de uma convicção colectiva ou meros artifícios sem consistência prática? Ou ainda: o que é, e como funciona, a democracia?
Os efeitos simbólicos são tanto mais subtis quanto Darabont sabe colocar em jogo algumas componentes (desde o poder da instituição militar até aos efeitos da alienação religiosa) que, de forma contida mas muito incisiva, ecoam alguns dramas da América contempo-rânea. De forma sugestiva, talvez possamos resumir o impacto de Nevoeiro Misterioso como uma fusão da inquietude simbólica de Os Pássaros (1963) [cartaz], de Alfred Hitchcock, com a angústia existencial de The Thing/Veio do Outro Mundo (1982) [imagem em baixo], de John Carpenter. No campo específico do género de terror, já há algum tempo que não víamos, assim, um trabalho tão rico de encenação e, ao mesmo tempo, tão consciente da tradição que o enquadra.