terça-feira, março 25, 2008

A distribuição das culpas (3/3)

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Face ao video da professora agredida por uma aluna, muitos discursos piedosos clamam pela família — ou porque a família está "desvalorizada", ou porque a "culpa" do ocorrido está toda na origem, isto é, na... família. De facto, "pró" ou "contra", esses são discursos que parecem querer generalizar a sua própria falta de disponibilidade para lidar com o mundo à sua/nossa volta. E essa disponibilidade começa, ou pode começar, por uma interrogação linear, precisa e incontornável: de que falamos quando falamos de família?
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De facto, uma coisa é falar da "família" das telenovelas, cujo principal índice de identificação parece ser o sofá da sala de estar: passa-se lá tudo e, em boa verdade, ninguém pertence ao mundo do trabalho porque, além de algumas peripécias de traições sempre se-xuais (na telenovela, como em qualquer dispositivo pornográfi-co, "tudo" é grosseiramente sexual), as personagens apenas dizem banalidades "existenciais" que, não poucas vezes, ficam a dever alguma reverência à gramática da língua portuguesa.
Outra coisa é falar da "família" de muitos anúncios. Aí, apesar de tudo, estamos num domínio mais estável: os homens têm um comportamento mais ou menos diletante e arrivista e só se preocupam com automóveis (e é muito interessante observar que, nos mesmos espaços em que clamam possuir as grandes audiências "populares", as televisões gastem imenso tempo a passar publicidade a caríssimos automóveis de luxo); as mulheres limitam-se a ser fiéis às melhores tradições do século XIX e, segundo parece, gastam 99 por cento do seu tempo a tentar encontrar o detergente certo, capaz de lhes trazer a felicidade absoluta.
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São caricaturas? Sim, mas encerram alguma pertinência. Porquê? Porque, maioritariamente, passou a falar-se da "família" como se isso fosse um conceito estável e automaticamente identificável; mais do que isso: como se cada família se equivalesse neces-sariamente a qualquer outra.
Seria preciso a coragem mínima (coragem mediática, entenda-se) de reconhecer que o conceito tradicional de família — "bom" ou "mau" — deixou de ter qualquer operacionalidade argumentativa. Aliás, esse conceito já nem sequer possui qualquer justeza meramente descritiva. Nenhum pensamento sobre as relações humanas do nosso presente pode dispensar esse reconhecimento, nem que seja nostálgico, da perda institucional do nosso património familiar: os espaços familiares contemporâneos são difusos, instáveis e estão feridos por uma perplexidade moral que os pode paralisar — não é fácil lidar com isso, porque as nossas vidas familiares não estão fáceis.
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Entre muitas outras coisas (algumas, por certo, enigmáticas e difíceis de articular), o episódio da professora agredida por uma aluna diz, não que a família falhou, mas que a família não está lá — decompôs-se, fragmentou-se, diluiu-se no éter de uma conjuntura em que a família é celebrada, todos os dias, não pelas instituições ou pelas opções políticas, mas pelos... concursos televisivos. E será preciso lembrar que esses concursos, por vezes no limite da mais triste vacuidade mental, apelam à vergonhosa infantilização, não apenas dos filhos, mas sobretudo dos pais?
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Nas televisões que temos, o alarido reinante pode começar por um sobressalto ocorrido no YouTube. Não que esse sinal que vem do YouTube não seja grave, perturbante, a carecer de enquadramento e reflexão. Só que as televisões inserem-no num sistema de delírio informativo em que tudo se equivale. Tudo? Sim, tudo. Se, algures em Manchester, Cristiano Ronaldo der um espirro mais intenso que o normal, a sua abençoada constipação ecoará nos telejornais com a mesma ferocidade que qualquer episódio, anedótico ou trágico, difundido pelo YouTube. Neste contexto, como é possível falar de famílias? E falar seriamente?