segunda-feira, março 24, 2008

A distribuição das culpas (1/3)

Tudo começou pelo YouTube: a agressão de que foi vítima uma professora — por uma aluna a quem tirara um telemóvel — relançou no espaço mediático português a discussão sobre três temas obviamente perturbantes e actualíssimos:
1) - as agressões (físicas e verbais) de alunos contra professores;
2) - as atitudes que se podem esperar (ou exigir) do corpo docente face a comportamentos tão brutais;
3) - a articulação entre a instituição escolar e a(s) família(s).
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Escusado será dizer que tudo o que está em jogo não é simples e, sobretudo, não se deixa resumir em sínteses mais ou menos "bloguísticas". Julgo, por isso, que vale a pena tentar, pelo menos, nomear aquilo que tende a ficar de fora. Mais concretamente, e para além da óbvia necessidade de discutir o caso particular e as suas ressonâncias globais, vale a pena tentar discernir o impensado de tudo isto. Onde começa esse impensado? Onde, hoje em dia, quase tudo começa ou, pelo menos, tudo vai desaguar. Ou seja: na televisão.
Não é fácil lidar com a questão: primeiro, porque a televisão está em todo o lado, em todos os recantos do tecido social. Apesar de ser sempre um sistema de representações/encenações mais ou menos elaboradas, a televisão apresenta-se e promove-se como coisa natural. De tal modo que a sua suposta naturalidade se tem traduzido num poder cada vez maior de atribuição e distribuição de culpas. Dos resultados da gestão política ("quem tem culpa da inflacção?") aos incidentes de um jogo de futebol ("quem é o culpado daquele golo?"), muitos protagonistas televisivos — a começar por alguns jornalistas — comportam-se como se fossem emissários de uma transcendência sem mácula: sabem sempre atribuir as culpas dos outros. Na prática, isto significa que a televisão se auto-representa como uma entidade, social e politicamente, sem culpas.
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Não se trata de "culpar" a televisão por aquilo que aconteceu entre aquela aluna e aquela professora — deduzir isso desta argumentação é um disparate típico dos que gostam de espalhar a confusão e que, em última instância, não estão interessados em favorecer qualquer tipo de reflexão sobre as responsabilidades da televisão.
E que responsabilidades são essas? Não, por certo, o apoiar uma aluna a agredir uma professora, mas sim a construção de uma imagem da sociedade em que não há mais nada a não ser conflitos. E isto em sentido muito literal: hoje em dia, vê-se um telejornal e tudo é apresentado/representado como sinal de uma tensão que possui, obrigatoriamente, uma dimensão catastrófica e catastrofista. E mais: isso virou o mundo do avesso, impondo uma nova ideologia dramática — um acidente com um cão merece mais atenção que a tragédia do Darfur.
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Nesta perspectiva, o problema não está apenas no alarmismo histerizante que acompanha uma notícia como esta que o YouTube, por assim dizer, previamente formatou. É que, em boa verdade, já não há nada que não seja motivo de alarme: um simples aumento de pluviosidade é tratado como um apocalipse prometido... Sem metáfora: é mesmo. Dito de outro modo (e em termos globais, sem esquecer que há ou pode haver excepções): a televisão representa o tecido social como um ininterrupto vulcão de inimagináveis violências, arquitectando uma histeria dos "factos" que, em boa verdade, pela saturação quotidiana, só pode gerar um inquietante fenómeno social: uma generalizada apatia.
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A questão agrava-se quando pensamos nos jovens, ou melhor, na representação televisiva dos jovens. O problema, insisto, não nasce com o tratamento particular desta notícia — é mesmo algo que se vem a agravar há várias décadas: primeiro com a imposição compulsiva dos modelos dramáticos e psicológicos das telenovelas (e, em particular, com as suas representações anedóticas e completamente irresponsabilizantes dos jovens); depois com a pornografia generalizada do Big Brother e seus derivados que, em clima de completa impunidade mediática e legislativa, instalaram uma visão estupidificante e cínica de todas as relações humanas, a começar pelas relações sexuais.
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Uma vez mais, para que seja claro: não foram as televisões que "montaram" ou "favoreceram" a agressão acima recordada. Mas tentar continuar a discutir as relações entre professores e alunos, adolescentes e adultos, como se vivêssemos num mundo sem televisões é uma ilusão que, cultural e afectivamente, se vai pagando muito caro — é contribuir para uma profundíssima cegueira social e moral.