terça-feira, março 18, 2008

Academia recebe Manoel de Oliveira


Manoel de Oliveira foi homenageado pela Academia das Ciências: um acontecimento pleno de ressonâncias emocionais e simbólicas — texto publicado no Diário de Notícias (16 Março), com o título 'Manoel de Oliveira e o amor pelo cinema'.

Sou um dos portugueses que se sentiram orgulhosos de ver o cineasta Manoel de Oliveira reconhecido como membro honorário da Academia das Ciências (em cerimónia realizada na quinta-feira, dia 13). Antes do mais, por uma razão muito simples e linear: independentemente dos juízos de valor que cada filme particular de Oliveira possa suscitar, ele é o símbolo mais forte de uma ideia de cinema português que não abdica de um permanente desafio às fronteiras do próprio trabalho cinematográfico, ao mesmo tempo que resiste à mera dissolução (estética e económica) desse mesmo cinema no caldeirão amorfo das ficções “telenovelescas” que, no nosso país, e perante a lamentável indiferença da maioria dos decisores políticos, tomaram o poder.
Compreendo, por isso, o desencanto com que Oliveira comentou as homenagens que tem recebido nos EUA. Desabafou ele: “Noticiadas por mil jornais americanos e aqui nada.” De facto, o problema não decorre de uma mera quantificação das notícias que foram ou não foram publicadas (algumas houve, claro). O problema enraíza-se num status quo em que o trabalho de Oliveira e, obviamente, também da maior parte dos realizadores portugueses está ameaçado por uma evolução mediática e, em particular, político-económica em que a especificidade do cinema se tornou um valor fraco, para não dizer inexistente.
Afinal de contas, vivemos num país em que os noticiários televisivos secundarizam, ou ignoram, os criadores artísticos (“bons” ou “maus”, não é isso que está em causa), ao mesmo tempo que um fait divers anedótico ou um crime passional ocorrido em alguma pobre aldeia esquecida podem ocupar, nesses mesmos noticiários, muitíssimo mais tempo que a situação no Iraque ou o drama do Darfur (não estou a exagerar: esta é uma verdade metricamente irrecusável).
E para que não simplifiquemos os dramas da nossa própria história colectiva, importa também não esquecer que a vida pública do cinema português sempre foi marcada por activíssimos preconceitos. Exemplo? Oliveira é o mesmo cineasta que, há quase 30 anos, e por causa desse filme extraordinário que é Amor de Perdição (1979) [foto ao lado], era objecto de chacota pública protagonizada por personalidades dos meios jornalístico e cultural (em boa verdade, a palavra “chacota” peca por defeito).
Nada disto diminui o valor simbólico do reconhecimento da Academia das Ciências. Bem pelo contrário, apenas o reforça. Mas, por respeito pelo trabalho de Oliveira (e, por extensão, de todos os profissionais do cinema português), será liminarmente pedagógico lembrar que as homenagens públicas não nos devem fazer distrair em relação ao triunfo ameaçador de uma cultura de raiz televisiva em que o cinema é tratado como uma matéria culturalmente descartável e financeiramente residual.
Revejo, entretanto, algumas imagens desse maravilhoso filme biográfico que é Porto da Minha Infância (2001), em que Oliveira se representou em jovem através do actor Ricardo Trêpa [foto em baixo], seu neto. Reencontro o testemunho simples, mas radical, de um verdadeiro amor pelo cinema: é um amor que não escolhe entre a “vida” e o “cinema”, celebrando a teia sem fim que ambos desenham e reinventam.