domingo, fevereiro 24, 2008

Músicas deste mundo

Em 2005, o Kronos Quartet solicitou a Terry Riley a composição de uma nova peça para assinalar o 70º aniversário do compositor. Assim surgiu The Cusp Of Magic (ed. Nonesuch), uma das mais ecléticas entre as obras recentes de Tery Riley, cruzando uma série de tradições e linguagens, nomeadamente referências de escolas ocidentais e elementos “exóticos” escutados em geografias e culturas diversas, com particular incidência nas heranças da música nativa norte-americana. A presença, com relativo protagonismo de Wu Man como solista abre mais ainda o mapa de eventos que Riley junta numa obra de evidente coesão musical. The Cusp of Magic é banda sonora para um rito estival, sugerindo o título, precisamente, o momento do solestício. O mundo prosaico, o da luz e do real, toma os acontecimentos, suplantando assim o fantástico e o reino das sombras. Dos quatro “pilares” de referência do minimalismo norte-americano (os outros três sendo La Monte Young, Steve Reich e Philip Glass), Tery Riley foi o que mais se afastou das linguagens e princípios que ajudou a definir nos anos 60. The Cusp Of Magic usa a repetição como uma das suas marcas de personalidade, mas em nada esse recurso é projecção da escola minimalista acima citada. Há, antes, aqui, uma assimilação de sugestões de transe e hipnotismo que provém de tradições mais remotas e menos vanguardistas, nomeadamente da música nativa norte-americana. É essa assimilação de marcas da terra, naturais num espírito com raizes californianas que, juntamente com a pipa de Wu Man e uma voz que sublinha esta outra geografia oriental, fazem de The Cusp Of Magic uma expressão interessante de uma expressão de identidade global. Na verdade, esta obra segue em tudo os vários caminhos já antes sugeridos na escrita de Riley, salvo apenas a curiosidade pelo jazz, aqui ausente. O encontro de culturas (e suas musicologias) serve de pretexto para, no fim, mais uma reflexão sobre a espiritualidade, esta talvez a mais constante marca de identidade ao longo de toda a obra do compositor.


A mais recente gravação da Kremetata Baltica, sob direcção de Gidon Kremer, para a ECM, reúne duas obras tardias de compositores marcantes na música do século XX. De Mahler apresenta-se o adágio da sua décima sinfonia, que deixou incompleta, em 1910. De Shostakovich, a 14ª, sinfonia que compôs em 1969 julgando então ser essa, muito possivelmente, a sua derradeira obra (na verdade viria a compor mais uma sinfonia, dois anos depois). É aqui particularmente arrepiante a abordagem a Mahler, numa leitura intensa, profundamente emocional, de uma obra que parece traduzir uma sensação de despedida. A abordagem de Kremer difere de outros arranjos já gravados da obra incompleta de Mahler, sugerindo a gravação um intenso assumir do adeus, que todavia termina sob marcas de irrevogável resignação.


Uma das gravações de música do século XX mais elogiadas de 2007 reúne uma série de obras de Francis Poulenc (1899-1963), entre si revelando sinais de busca pelo bucolismo perdido para ouvidos da grande cidade. Les Animaux Modèles, de 1940, foi o seu terceiro e último bailado, nascido de uma série de recontextualização de heróis de velhas fábulas de La Fontaine, humanizando-os, retratando-os no papel de camponeses. O campo é também cenário em Concert Champêtre, de 1926, havendo todavia quem descreva o “campestre” do título mais como uma alusão a tempos perdidos, que concretamente a uma geografia rural. Stefano Bolani (piano) é nestas duas gravações solista, à frente da Filarmionica ‘900 Del Teatro Regio di Torino, dirigida por Jan Latham-Koenig. Edição de autor, assegurada pela própria orquestra.