sábado, dezembro 29, 2007

O cenário como personagem

No seu novo filme, Will Smith surge como Robert Neville, único sobrevivente humano (acompanhado pela sua cadela, Samantha) numa Nova Iorque pós-apocalíptica — dirigido por Francis Lawrence, I Am Legend/Eu Sou a Lenda adapta o romance homónimo de Richard Matheson (publicado em 1954 e situado em Los Angeles), seguindo uma lógica dramática mais ou menos típica do cruzamento entre "ficção científica" e "terror", desembocando no inevitável confronto com as "criaturas" que geraram o próprio apocalipse.
O filme, além da sofisticação dos seus meios, é competente e eficaz, mas possui uma dimensão que importa valorizar para além da sua performance espectacular. Curiosamente, tem a ver com os efeitos especiais, mas com uma muito específica aplicação dos seus poderes figurativos. Assim, Eu Sou a Lenda "fabrica" uma assombrada e assombrosa Nova Iorque, feita de ruínas gigantescas, milhares de carros abandonados e cenários urbanos invadidos por ervas daninhas — de facto, a cidade é a primeira e envolvente personagem da acção. É um exemplo feliz de como o efeito especial pode ser entendido, não como a mera ostentação de uma qualquer proeza visual (ou sonora), antes como um instrumento de trabalho que permite servir os pressupostos dramáticos e o projecto dramatúrgico de um filme. Afinal de contas, o genial Dead Ringers/Irmãos Inseparáveis (1988), de David Cronenberg, era também uma fabulosa aplicação dos efeitos especiais — a sua proeza consistia em colocar Jeremy Irons a contracenar com... Jeremy Irons.