Como é que vemos as crianças? Em termos mediáticos, como repre-sentamos as crianças? E que crianças? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Dez.), com o título 'De que falamos quando falamos das crianças?' >>>
As imagens de Made-leine McCann passa-ram a fazer parte do nosso quotidiano. De-saparecida há mais de seis meses (3 de Maio), a filha de Kate e Gerry McCann tornou-se uma referência do-minante para a circu-lação de informação sobre crianças desapa-recidas. Anúncios co-mo o que aqui se reproduz (associando Madeleine a Yeremi Vargas, desaparecido nas Canárias) ilustram um padrão de enunciação de um tema inevitavelmente perturbante: a vulnerabilidade das crianças e, por isso mesmo, a responsabilidade dos adultos.
Acredito que qualquer pessoa com um mínimo de compaixão e amor pelo próximo sente dificuldade em falar do caso McCann. Apesar da especulação e desmandos de muitas formas tablóides de informação (escrita e televisiva; portuguesa, inglesa e de todas as origens), acredito também que a maioria dos cidadãos evita entregar-se a processos mecânicos de julgamento, rejeitando as imposturas e equívocos de qualquer justiça “popular”.
Daí também que seja importante interrogarmos de que modo a “avalancha” de informação sobre Madeleine se substitui a outro tipo de informações ou abordagens. Avançar com essa hipótese não é, obviamente, uma forma de rasurar o drama de uma criança desaparecida, muito menos de banalizar a crueldade de tudo aquilo que os seus pais e restantes familiares têm vivido nos últimos meses.
De facto, instalou-se uma espécie de efeito “folhetinesco” na abordagem do caso McCann, como se o desaparecimento de Madeleine fosse um baú de referências (das notícias objectivas à mais vergonhosas especulações) a que, ciclicamente, se recorre. Voltou a acontecer agora, com a mensagem natalícia de Kate e Gerry, falando sobre Madeleine, dirigindo-se ao seu eventual raptor, enfim, remetendo para o número de telefone inscrito na base do ecrã. Dir-se-ia que estávamos apenas perante a variação mais trágica de um registo anódino da televisão mais populista.
Embora correndo o risco de atrair as formas mais dema-gógicas de (des)informação, importa sublinhar que esta atenção regular e obsessiva ao caso McCann acontece no mesmo mundo mediático em que muito pouco se noticia sobre os dramas planetários das crianças. Exemplos? Bastará um, creio, para chamar a atenção para a desproporção informativa em que vivemos. Assim, segundo dados divulgados pela organização internacional Save the Children, o número de crianças a quem, em todo o mundo, não é conferido o direito de frequentar uma escola ascende a 72 milhões. Metade dessas crianças (portanto 36 milhões) vive em países em guerra, sendo muitas delas vítimas de exploração laboral ou forçadas a pegar em armas e integrar forças militares.
Nada disto serve para negar a dor, o sofrimento e o desespero inerentes ao caso McCann. Muito menos para recusar toda a atenção humana e legal que ele justifica. Ficamos, no entanto, a saber que as imagens de uma criança circulam mais do que as imagens (e as histórias) de 72 milhões de outras crianças. É um assunto sobre o qual qualquer jornalista deveria reflectir. Sem processos de intenção nem culpabilizações fáceis. Apenas para perguntar: de que falamos quando falamos das nossas crianças?
As imagens de Made-leine McCann passa-ram a fazer parte do nosso quotidiano. De-saparecida há mais de seis meses (3 de Maio), a filha de Kate e Gerry McCann tornou-se uma referência do-minante para a circu-lação de informação sobre crianças desapa-recidas. Anúncios co-mo o que aqui se reproduz (associando Madeleine a Yeremi Vargas, desaparecido nas Canárias) ilustram um padrão de enunciação de um tema inevitavelmente perturbante: a vulnerabilidade das crianças e, por isso mesmo, a responsabilidade dos adultos.
Acredito que qualquer pessoa com um mínimo de compaixão e amor pelo próximo sente dificuldade em falar do caso McCann. Apesar da especulação e desmandos de muitas formas tablóides de informação (escrita e televisiva; portuguesa, inglesa e de todas as origens), acredito também que a maioria dos cidadãos evita entregar-se a processos mecânicos de julgamento, rejeitando as imposturas e equívocos de qualquer justiça “popular”.
Daí também que seja importante interrogarmos de que modo a “avalancha” de informação sobre Madeleine se substitui a outro tipo de informações ou abordagens. Avançar com essa hipótese não é, obviamente, uma forma de rasurar o drama de uma criança desaparecida, muito menos de banalizar a crueldade de tudo aquilo que os seus pais e restantes familiares têm vivido nos últimos meses.
De facto, instalou-se uma espécie de efeito “folhetinesco” na abordagem do caso McCann, como se o desaparecimento de Madeleine fosse um baú de referências (das notícias objectivas à mais vergonhosas especulações) a que, ciclicamente, se recorre. Voltou a acontecer agora, com a mensagem natalícia de Kate e Gerry, falando sobre Madeleine, dirigindo-se ao seu eventual raptor, enfim, remetendo para o número de telefone inscrito na base do ecrã. Dir-se-ia que estávamos apenas perante a variação mais trágica de um registo anódino da televisão mais populista.
Embora correndo o risco de atrair as formas mais dema-gógicas de (des)informação, importa sublinhar que esta atenção regular e obsessiva ao caso McCann acontece no mesmo mundo mediático em que muito pouco se noticia sobre os dramas planetários das crianças. Exemplos? Bastará um, creio, para chamar a atenção para a desproporção informativa em que vivemos. Assim, segundo dados divulgados pela organização internacional Save the Children, o número de crianças a quem, em todo o mundo, não é conferido o direito de frequentar uma escola ascende a 72 milhões. Metade dessas crianças (portanto 36 milhões) vive em países em guerra, sendo muitas delas vítimas de exploração laboral ou forçadas a pegar em armas e integrar forças militares.
Nada disto serve para negar a dor, o sofrimento e o desespero inerentes ao caso McCann. Muito menos para recusar toda a atenção humana e legal que ele justifica. Ficamos, no entanto, a saber que as imagens de uma criança circulam mais do que as imagens (e as histórias) de 72 milhões de outras crianças. É um assunto sobre o qual qualquer jornalista deveria reflectir. Sem processos de intenção nem culpabilizações fáceis. Apenas para perguntar: de que falamos quando falamos das nossas crianças?