Este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Dez.), com o título ' "Call Girl" e os paradoxos do cinema português' >>>
Não tenhamos ilusões: em matéria de cinema, o discurso machista de muitos homens (e mulheres, hélas!...) continua a ser moeda corrente. Ainda hoje, 35 anos passados sobre o aparecimento de O Último Tango em Paris [foto], há muitos respeitáveis ci-dadãos que se deliciam a espe-cular sobre a respectiva “cena da manteiga”, como se isso re-sumisse a tragédia íntima que Bernardo Bertolucci filmou e, sobretudo, a perturbante bele-za das interpretações de Mar-lon Brando e Maria Schneider.
Não tenhamos mesmo ilusões: o filme português Call Girl, produzido por Tino Navarro e realizado por António-Pedro Vasconcelos, vai ser sistematicamente rotulado através dos centímetros de nudez que nos são “concedidos”. Aliás, tal alarido será em grande parte gerado pelos mesmíssimos profissionais da (des)informação que nunca disseram ou escreveram uma única palavra sobre a mediocridade dramática e moral das ficções telenovelescas (com ou sem nus).
Na prática, isso pode ter uma primeira e dramática consequência: a banalização do trabalho da prota-gonista de Call Girl, Soraia Chaves. Ela expõe-se não apenas como uma actriz de corpo inteiro (as leituras possíveis da expressão estão na sua cabeça, caro leitor...), mas como um genuíno fenómeno no interior do nosso cinema. Recuando aos tempos heróicos do cinema novo português, podemos dizer que Soraia Chaves possui esse misto de verdade física e abstracção formal que distinguia a esplendorosa presença de Maria Cabral [foto] em O Cerco (1970), de António da Cunha Telles. A existência de uma actriz assim é uma dádiva estética e comercial para qualquer cinematografia (e faço questão em sublinhar que emprego o adjectivo “comercial” sem a mais pequena conotação pejorativa).
Infelizmente (ou felizmente...), isto acontece numa conjuntura em que as tensões no interior do cinema português são mais violentas do que nunca. Mesmo deixando de parte as muitas quezílias pessoais, cada uma mais vergonhosa que a outra, importa relembrar que o cinema português vive estrangulado por duas concepções extremistas: por um lado, o saudosismo dos que querem reencontrar a “pureza” conceptual dos anos 60; por outro lado, o mercantilismo de “gestores” que nunca tiveram qualquer gosto pelo cinema e pelas suas especificidades, apenas desejando esmagar o mercado através da ditadura dos formatos televisivos.
Há em tudo isto uma paradoxal ironia sobre a qual as avestruzes culturais e políticas poderão reflectir. De facto, Call Girl é um produto que chega ao mercado com a chancela da TVI, precisamente a televisão que, nomeadamente através do Big Brother, mais contribuiu para a degradação formal e afectiva de muitas formas da nossa comunicação contemporânea. Ao mesmo tempo, do mercantilismo das relações humanas à corrupção nos meios económicos e políticos, o trabalho de António-Pedro Vasconcelos possui a virtude simples, mas muito estimável, de apanhar o “ar do tempo”, lançando ao espectador uma proposta muito linear. A saber: “contemplem o vosso presente no cinema português.” Call Girl não precisa de ser uma obra-prima para reconhecermos a verdade, a pertinência e a inteligência dessa sua proposta.
Não tenhamos ilusões: em matéria de cinema, o discurso machista de muitos homens (e mulheres, hélas!...) continua a ser moeda corrente. Ainda hoje, 35 anos passados sobre o aparecimento de O Último Tango em Paris [foto], há muitos respeitáveis ci-dadãos que se deliciam a espe-cular sobre a respectiva “cena da manteiga”, como se isso re-sumisse a tragédia íntima que Bernardo Bertolucci filmou e, sobretudo, a perturbante bele-za das interpretações de Mar-lon Brando e Maria Schneider.
Não tenhamos mesmo ilusões: o filme português Call Girl, produzido por Tino Navarro e realizado por António-Pedro Vasconcelos, vai ser sistematicamente rotulado através dos centímetros de nudez que nos são “concedidos”. Aliás, tal alarido será em grande parte gerado pelos mesmíssimos profissionais da (des)informação que nunca disseram ou escreveram uma única palavra sobre a mediocridade dramática e moral das ficções telenovelescas (com ou sem nus).
Na prática, isso pode ter uma primeira e dramática consequência: a banalização do trabalho da prota-gonista de Call Girl, Soraia Chaves. Ela expõe-se não apenas como uma actriz de corpo inteiro (as leituras possíveis da expressão estão na sua cabeça, caro leitor...), mas como um genuíno fenómeno no interior do nosso cinema. Recuando aos tempos heróicos do cinema novo português, podemos dizer que Soraia Chaves possui esse misto de verdade física e abstracção formal que distinguia a esplendorosa presença de Maria Cabral [foto] em O Cerco (1970), de António da Cunha Telles. A existência de uma actriz assim é uma dádiva estética e comercial para qualquer cinematografia (e faço questão em sublinhar que emprego o adjectivo “comercial” sem a mais pequena conotação pejorativa).
Infelizmente (ou felizmente...), isto acontece numa conjuntura em que as tensões no interior do cinema português são mais violentas do que nunca. Mesmo deixando de parte as muitas quezílias pessoais, cada uma mais vergonhosa que a outra, importa relembrar que o cinema português vive estrangulado por duas concepções extremistas: por um lado, o saudosismo dos que querem reencontrar a “pureza” conceptual dos anos 60; por outro lado, o mercantilismo de “gestores” que nunca tiveram qualquer gosto pelo cinema e pelas suas especificidades, apenas desejando esmagar o mercado através da ditadura dos formatos televisivos.
Há em tudo isto uma paradoxal ironia sobre a qual as avestruzes culturais e políticas poderão reflectir. De facto, Call Girl é um produto que chega ao mercado com a chancela da TVI, precisamente a televisão que, nomeadamente através do Big Brother, mais contribuiu para a degradação formal e afectiva de muitas formas da nossa comunicação contemporânea. Ao mesmo tempo, do mercantilismo das relações humanas à corrupção nos meios económicos e políticos, o trabalho de António-Pedro Vasconcelos possui a virtude simples, mas muito estimável, de apanhar o “ar do tempo”, lançando ao espectador uma proposta muito linear. A saber: “contemplem o vosso presente no cinema português.” Call Girl não precisa de ser uma obra-prima para reconhecermos a verdade, a pertinência e a inteligência dessa sua proposta.