terça-feira, outubro 09, 2007

Maurice Pialat: mensagens da solidão

Texto publicado na revista 'NS' do Diário de Notícias (6 Out.), com o título 'Na solidão de Pialat' >>> Na história moderna do cinema francês, Maurice Pialat (1925-2003) foi sempre a imagem de um criador solitário, obsessivo, inevitavelmente polémico. Por um paradoxo pleno de ironia, foi com Sob o Sol de Satanás, já lá vão vinte anos, que conseguiu aquilo que, depois, a França ainda não repetiu: arrebatar a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Ficou célebre, aliás, a frase com que Pialat respondeu aos apupos que acom-panharam a entrega do prémio: “Vocês não gostam de mim, mas eu também não gosto de vocês.”
Em boa verdade, a obra de Pialat excede todos os fait divers que possamos evocar. Ele foi um autor conduzido por um realismo tenaz, resistente às facilidades do naturalismo corrente e, por isso mesmo, sempre apaixonado pelo trabalho dos actores (mesmo se é verdade que se tornou lendária a dureza com que os tratava). Aos Nossos Amores (1983), finalmente disponível em DVD, é um prodigioso exemplo dessa sua paixão. Dirigindo a estreante Sandrine Bonnaire, contava ela 16 anos, Pialat propõe um retrato directo e perturbante de uma adolescente que usa o sexo como uma espécie de dramática “compensação” para uma existência familiar e social a desmoronar-se. Na crueza do seu olhar, Aos Nossos Amores é também um filme de uma pulsão poética única e envolvente.
O mesmo se poderá dizer, aliás, do penúltimo título da filmografia de Pialat, também agora editado em DVD: embora partindo de uma abordagem de carácter biográfico, Van Gogh (1991) cedo se liberta de todas as convenções do género, para nos confrontar com um desnudamento do artista que coincide com uma subtil reflexão sobre as diferenças entre as razões íntimas da arte e a banalidade da sua percepção pública. Que Pialat esteja a filmar um pintor, eis o que está longe de ser um detalhe secundário. De facto, o cineasta foi também um pintor e não será abusivo ver em Van Gogh uma projecção muito directa da sua experiência artística e, mais do que isso, de uma predisposição conflituosa em relação à “normalização” cultural da sua própria obra.
Vendo ou revendo agora Aos Nossos Amores e Van Gogh, é inevitável sublinhar que Pialat se insere numa tradição plástica e narrativa em que a verdade dos corpos é um valor fundamental. Nesse aspecto, talvez possamos dizer que o negrume existencial do seu cinema existe como um contraponto à exuberância emocional herdada de um clássico como Jean Renoir (1894-1979). Para Pialat, a solidão é sempre o fantasma de todas as relações e o ponto de fuga de todos os gestos.