segunda-feira, setembro 03, 2007

Bresson: na raiz do cinema

Recentemente, foram editados em DVD três filmes de Robert Bresson — o texto que se segue foi publicado no Diário de Notícias (revista 'NS') de 1 de Setembro, com o título 'Regresso ao "cinematógrafo"' >>> Robert Bresson faleceu em 1999, contava 98 anos. O seu derradeiro filme, L’Argent/O Dinheiro, tinha sido rodado em 1983. Tendo em conta que a exaltação dos clássicos do cinema não é exactamente a principal linha de força das programações (?) televisivas, talvez possamos começar a compreender o relativo apagamento do nome de Bresson na memória da cinefilia. E por aí podemos também pressentir a importância desta edição (Midas Filmes) de três dos seus títulos: Pickpocket/O Carteirista (1959), O Processo de Joana D’Arc (1962) e O Dinheiro.
Não simplifiquemos, no entanto. Para o “esquecimento” de Bresson contribui também o seu ambíguo posicionamento histórico. Ainda que incensado pelos críticos/cineastas da Nova Vaga francesa, Bresson nunca foi um membro “oficial” do movimento, quanto mais não seja porque a sua filmografia começa muito antes: Les Anges du Péché, a sua primeira longa-metragem, data de 1943. Além do mais, se algo distingue o seu labor é a criação de um universo esteticamente autónomo, construído como se o cinema tivesse regressado ao zero e fosse indispensável reinventar toda a sua linguagem.
O Carteirista [foto], porventura o mais conhecido dos seus filmes, é disso um luminoso exemplo. Bresson encena a história de um ladrão, não a reduzindo a um fait divers social (mesmo se tal dimensão constitui uma espécie de pano de fundo), antes tratando-a como um processo íntimo, quase secreto, de redenção. O rigor gráfico das imagens, reforçado pela minúcia dos sons, confere ao filme a respiração própria de um verdadeiro requiem tocado, em última distância, pela vocação religiosa do amor.
Não admira que, ao lidar com a história lendária de Joana D’Arc, Bresson se fixe na frieza mecânica, propriamente infernal, dos factos: O Processo de Joana D’Arc existe como uma elegia sobre a solidão individual face à mecânica cega da lei. No fundo, trata-se de filmar a impossível equivalência entre o valor (colectivo) e a verdade (individual), seguindo um método que atinge a sua depuração máxima nesse extraordinário exercício de cinema que é O Dinheiro. Inspirando-se num conto de Tolstoi, Bresson transfere a acção para um presente de consumo generalizado, simbolizado pela proliferação das máquinas de “multibanco”. E raras vezes se terá filmado com tamanha precisão e desencanto a crueza material do dinheiro e o modo como a sua circulação contamina os mais anódinos gestos humanos.
Ainda que sem extras significativos (apenas uma filmografia de Bresson e algumas imagens dos filmes), esta é uma edição central na actividade do DVD ao longo deste ano. A excelente qualidade das transcrições valoriza ainda mais a redescoberta de um cineasta que, não por acaso, proclamava que o cinema se devia manter fiel à sua mais primitiva capacidade de olhar os seres e os seus mistérios. Afinal de contas, para designar o “cinema”, Bresson preferia a velha palavra “cinematógrafo”.