terça-feira, agosto 21, 2007

Em grande plano

Monica Vitti, O Eclipse (1962)

Texto publicado no Diário de Notícias (19 de Agosto), com o título 'Quando o fute-bol marginaliza o cinema' >>> Repensando nas reacções mediáticas às mortes dos cineastas Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, ambas a 30 de Julho, continuo a não conseguir esquecer-me da notícia que, no dia seguinte, ouvi numa rádio (RFM), identificando Antonioni como um cineasta “neo-realista”.
Quem escreveu a notícia, quem a leu, quem a avalizou como texto editorialmente correcto... nada disso me interessa. Nem sequer me custa admitir todos os possíveis erros humanos. O que me espanta é que semelhante (des)informação, passando necessariamente por diversos olhares, acabe por ser tornada pública, bloqueando a mais simples e pedagógica relação com a história do cinema.
De facto, se há maneira de aceder à importância histórica de Antonioni é, justamente, evocando o seu empenho em ultrapassar as matrizes dramáticas e os valores morais herdados do neo-realismo (como se pode perceber a partir desse título emblemático de 1957 que é O Grito). Aliás, mesmo tendo em conta que Antonioni começa a filmar ainda marcado pela conjuntura neo-realista, como esquecer que o neo-realismo se decompõe ao longo da década de 50? Mais do que isso: como colar tal rótulo a um autor que, depois disso, trabalhou durante mais meio século?
O episódio reduz-se a uma triste dimensão anedótica. Infelizmente, há nele um valor sintomático que, uma vez mais, importa referir: continuamos a assistir à militante banalização do cinema como fenómeno específico, com uma história própria e um património insubstituível. Os principais agentes de tais fenómenos são as televisões generalistas. Através de duas directrizes fundamentais: primeiro, os privilégios concedidos a formas de ficção “telenovelescas”; segundo, os horários marginais da maior parte dos filmes.
Um dos sinais mais reveladores de tal situação é a indiferença pelas imagens cinematográficas. Assim, por exemplo, podem gastar-se longuíssimos minutos com as análises de um lance de futebol, mostrando, repetindo e voltando a repetir imagens que são consideradas pertinentes para a (boa) informação dos espectadores. Mas nunca, por princípio, se pega numa imagem cinematográfica para atentar na sua riqueza ou complexidade.
Aliás, não deixa de ser curioso que as televisões façam com o futebol precisamente aquilo de que acusam os intelectuais. Ou seja: olhar para uma imagem, contemplá-la, demorar tempo com ela, tentar perceber os significados e significações que a atravessam. Sem qualquer ambiguidade, importa dizer que, hoje em dia, televisivamente, só o futebol é tratado de forma intelectual. Ainda bem: pelo menos pensa-se sobre alguma coisa...
Por mim, como espectador, gostaria que se tivesse dito alguma coisa, por exemplo, sobre o valor dos grandes planos em Bergman e Antonioni. A noção de que o grande plano é um elemento de linguagem próprio das televisões é um desses lugares-comuns que roça a impostura estética. Teria sido preciso alguma disponibilidade para rever os grandes planos dos actores de Bergman e Antonioni e, acima de tudo, o seu revolucionário valor figurativo e dramatúrgico.
Este é Bertil Guve, em Fanny e Alexandre (1982), de Ingmar Bergman: acontecem mais coisas neste grande plano do que num dia inteiro de telenovelas.

Bertil Guve, Fanny e Alexandre (1982)