sábado, julho 07, 2007

Um estranho numa terra estranha

O governo é uma quase incurável doença da humanidade quando se está perante algo que se assemelhe a uma grande densidade populacional
Robert A. Heinlein, 1973

Palavras no centenário de Robert A. Heinlein

Porque gostamos de ficção científica? Uma possível resposta a esta questão ainda em aberto pode encontrar-se em palavras do então recentemente revelado Robert A. Heinlein (1907-1988), proferidas numa convenção em Denver (Colorado, Estados Unidos), em 1941. Para o escritor, “não é apenas pela aventura que se lê na história”. De resto, sublinha que encontramos aventura em muitos outros tipos de histórias. A resposta encontra-se no facto de a ficção científica ter, como “elo mais forte”, a “única coisa que separa a raça humana dos outros animais”, que Heinlein refere como “a capacidade de ligar tempos” (“time-bending” no original, um conceito desenvolvido por Alfred Korzybski), ou seja, “a possibilidade do animal humano viver no presente, mas também no passado e no futuro”...


Apenas dois anos depois de ter publicado o seu primeiro conto e de ter escrito o seu primeiro romance (For us, the living: A comedy of customs, que só conheceria edição póstuma, em 2005), Robert A. Heinlein denunciava já nesta invulgar visão sobre o universo da ficção científica uma vontade de nele procurar mais do que eventuais projecções de feitos futuros do homem. O homem, de resto, foi ele mesmo o centro das atenções de uma vasta, versátil e influente obra que de Heinlein fez um dos mais visionários escritores do género, sendo de resto reconhecido o importante papel que desempenhou na elevação da ficção científica para um patamar literário mais exigente, abrindo novos e desafiantes horizontes para lá de uma certa ortodoxia baseada em clones de H.G. Wells e Júlio Verne que dominava as “pulp magazines” dos anos 20 e 30. Celebrado hoje, cem anos depois do seu nascimento, como um dos mais destacados e importantes autores de ficção científica de “linha dura”, elevou ainda, além desta valorização literária, a fasquia da plausibilidade factual e científica nestes domínios da ficção.


Robert Anson Heinlein nasceu em Butler (Missouri, Estados Unidos) a 7 de Julho de 1907 e seguiu uma carreira militar na armada, até ser afastado (em 1934) por razões de saúde. Da vida militar colheu ideais de lealdade e liderança, que projectaria mais tarde em diversos exemplos na sua obra escrita. Novamente civil, estudou então matemática e física. Sonhou uma carreira política (no Partido Democrático), mas sem sucesso. Trabalhou em imobiliárias, em minas, mas encontrou rumo quando, em 1939, publicou a sua primeira ficção na revista Astounding Science Fiction. A guerra devolveu-o ao serviço militar, numa base naval na qual trabalhou com o jovem recruta Isaac Asimov, com quem firmou uma amizade que duraria para o resto da vida. As explosões de Hiroxima e Nagasaki e, mais tarde, a Guerra Fria, desviaram-no definitivamente para a escrita, em ficções nas quais procurou reflectir sobre as suas visões políticas (que variaram ao longo dos tempos, rumando gradualmente para uma ideologia de direita, porém sob ideais sociais claramente liberais). Teve sucesso, revelando-se o primeiro escritor de ficção científica a conseguir publicar regularmente em revistas mainstream e também o primeiro a conseguir fazer de um romance do género um best seller na idade das grandes tiragens.


Controversa e longe de unânime, apesar de hoje tida por referencial, a obra de Robert A. Heinlein abordou essencialmente temáticas sociais, do individualismo (uma das mais caras bandeiras de afirmação pessoal do autor) aos domínios da fé, a liberdade sexual, as contraculturas, as diversas noções de família, a exclusão. E, na sua vida privada, tentou ser fiel aos ideais e visões que lançava na ficção. Uma das suas obras maiores (apesar de secundarizada num dos mais importantes estudos críticos sobre a sua escrita, Heinlein in dimension, de Alexei Panshin, publicado em 1968), Um estranho numa terra estranha (no original Stranger in a strange land, de 1961), é uma das mais aclamadas pérolas da literatura de ficção científica, abarcando no seu âmago, além de uma história de descoberta e aventura (a dada altura com tempero de enredo político e policial), uma série de reflexões sobre o ser diferente, a liberdade sexual, jogos entre poder e media e, no fim, uma sucessão de quadros e pensamentos sobre fé e religião. Abraçado pela contracultura hippie, este romance é um dos sete que Heinlein publica entre 1961 e 1973, o seu “período maduro” (como habitualmente é descrito pelos seus admiradores e estudiosos).


Desse mesmo período datam dois outros romances fundamentais. Num deles, Revolta na lua (The moon is a harsh mistress) parte do retrato de um regime autoritário numa colónia lunar para daí construir uma visão crítica sobre o excesso de poder e suas manifestações concretas em regimes onde a liberdade é escassa. O seu recorrente emprego da ficção para combater eventuais futuros (ou contemporâneos) cenários de políticas restritivas e castradoras não se fechou, contudo, em evidentes recontextualizações de olhares sobre o bloco comunista. De resto, Heinlein é igualmente assertivo no afirmar de um desejo estrutural de liberdade quando, em Revolta em 2100 (Revolt in 2100), de 1953, descreve uma revolução que derruba uma ditadura religiosa na América do Futuro. Do período “maduro” destaque-se ainda um outro título incontornável, este por representar talvez o mais “liberto” e provocador dos seus romances centrados em temáticas satélite da sexualidade e da noção de género. De 1970, Não temerei nenhum mal (I will fear no evil), abre espaço às mais variadas e possíveis noções de combinações sexuais, hetero, homo e bissexuais. Neste livro, tal como acontece também em muitas das suas outras obras, encontramos marcas de uma postura invulgar para alguém da sua geração, notando-se em muitas das suas heroínas marcas da solidez e modernidade da sua terceira mulher, Virginia Heinlein, companheira de todos os momentos profissionais e pessoais a partir de 1947.


O seu célebre romance de 1959, Soldado no Espaço (no original Starship troopers, livro levado ao cinema numa versão pouco entusiasmante, em 1997, por Paul Verhoeven), foi vilipendiado por alguns detractores seus como sendo um texto fascista, confusão feita com o rigor da visão militarista de um texto nascido como resposta à decisão unilateral dos americanos em abandonar testes nucleares. Apesar da educação militar, Heinlein questionou a ideia de autoridade (sendo Nave Galileu, O planeta vermelho ou o já referido Revolta na lua os exemplos habitualmente citados).

19 anos depois da sua morte, é ainda influente presença junto de novos autores, públicos e colecções de ficção científica. Heinlein baptizou já uma cratera em Marte e, neste momento, uma petição sugere que um novo navio da armada americana receba, na amurada, o seu nome. Estranho, portanto, que esteja quase ausente dos escaparates das livrarias portuguesas, apesar de haver ainda títulos disponíveis em armazéns, e que nenhuma editora portuguesa com colecções activas na área da ficção científica se tenha lembrado de o reeditar...

PS. Texto originalmente publicado na revista Op, republicado hoje, dia do seu centenário