É cada vez mais difícil falar de cinema no espaço mediático em que vivemos. Hoje, por exemplo, inadvertidamente, ouvi uma notícia numa rádio (RFM) em que, a propósito da morte de Michelangelo Antonioni, se evocava a sua condição de "referência neo-realista"...
Porque é que é difícil falar? Porque domina este saber-sem-saber, altivo e juvenil, que proclama as mais terríveis banalidades ou os maiores equívocos com a serenidade de quem enuncia uma lei universal. De facto, se algo permite definir os tempos fundadores da obra de Antonioni é o paciente, elaborado e, à sua maneira, militante empenho em superar a herança neo-realista, nomeadamente substituindo a "pureza" dos heróis positivos pelas sombras de novas personagens, dilaceradas pela sociedade dos anos 50/60 - será importante ver ou rever, por exemplo, esse filme fascinante que é O Grito (1957) para compreender tal dinâmica criativa (e também a sua política simbólica).
A "notícia" citada concluía a referência ao "neo-realismo" de Antonioni com a evocação de Profissão: Repórter (1975), filme cujo incomensurável alheamento de qualquer dinâmica neo-realista vai ao ponto de discutir, ponto por ponto, a própria possibilidade de realismo na representação dos dramas do homem contemporâneo. Profissão: Repórter é mesmo um espantoso ensaio sobre a nova e inquietante coexistência dos rostos e das máscaras, da verdade e do simulacro, num mundo em que a palavra "eu" parece estar sujeita a uma metódica desvalorização simbólica. Aproximar Profissão: Repórter de qualquer referência neo-realista é o mesmo que pretender explicar uma abstracção de Mondrian a partir dos códigos de composição dos ícones medievais...
PS - Pouco depois das 20h30, numa peça do Telejornal da RTP1, Rui Lagartinho começa por lembrar que Fellini e Antonioni foram decisivos para "virar a página" do neo-realismo. Simples e directo, felizmente. Nem tudo está perdido...