terça-feira, julho 24, 2007

Alguns fotogramas de Vila do Conde

Texto publicado no Diário de Notícias (23 de Julho), com o título 'Recordar os filmes é também preservá-los' >>> Acompanhei os três dias finais da 15ª edição do Festival de Curtas-Metragens de Vila de Conde (que terminou no dia 15). Em tempos de tantas formas de normalização do audiovisual — da criação ao consumo —, sabe bem reencontrar um espaço que se distingue por uma grande abertura temática, da cinefilia ao experimentalismo, e também por uma organização competente e eficaz (sublinhada pela presença de um público fiel e numeroso, sobretudo nas sessões da noite).
Por lá passou um dos grandes filmes da mais recente produção portuguesa (aliás já revelado, em Abril, no IndieLisboa): China, China, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, é a prova real de que é possível fazer um cinema atento à complexidade do quotidiano (a personagem central é uma chinesa que vive em Lisboa, na zona do Martim Moniz), sem qualquer tipo de submissão ao “naturalismo sociológico” das televisões. Esperemos que os agentes do mercado tenham a perspicácia necessária para dar a ver este filme de 19 fulgurantes minutos como complemento de alguma longa-metragem (portuguesa ou não).
Não por acaso, a questão da especificidade cinematográfica passou por alguns dos títulos mais estimulantes de Vila do Conde. Vale a pena lembrar dois deles, unidos pela mesma vontade de não banalizar o cinema como património de ficções, imagens e imaginações: Gravity, de Nicolas Provost, e Elegia para Alguns Fotogramas Portugueses, de Fernando Lopes. Ambos partem do reconhecimento de que as tecnologias digitais favorecem novas formas de (re)conhecimento das memórias dos filmes: no primeiro, recuperando algumas cenas de beijos do cinema clássico; no segundo, como o título esclarece, propondo uma revisitação do património cinematográfico português.
O trabalho de Nicolas Provost consiste em coleccionar algumas referências emblemáticas, de Hitchcock (Vertigo, entre outros) a Resnais (Hiroshima, Meu Amor), por assim dizer “enrolando-as” uma nas outras. Os beijos de diversos pares são remontados num aceleradíssimo jogo de alternâncias: vemos quatro ou cinco fotogramas de um beijo seguidos de outros tantos de outro, e voltamos ao primeiro, ao segundo, ao primeiro... O resultado tem o seu quê de alucinatório, até porque Provost vai encadeando uns beijos nos outros, de modo a criar uma espécie de cena imaginária: vemos o cinema como uma paisagem incestuosa de imagens, resistindo a dissolver-se na banalidade do mundo circundante.
Há também um fortíssimo sentido de resistência na Elegia de Fernando Lopes. Neste caso, o cinema surge citado, antes de tudo o mais, através da quietude fotográfica dos fotogramas. Mas não são meras “fotografias” de filmes. São imagens que nos recolocam face a diversos momentos históricos (Verdes Anos, de Paulo Rocha, Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos, Vale Abraão, de Manoel de Oliveira, etc.), para nos confrontarem também com o seu carácter perecível: o fogo (literalmente: o fogo) insinua-se nos fotogramas, duplicando a sua beleza, expondo a sua vulnerabilidade. Elegia para Alguns Fotogramas Portugueses é um gesto de desesperada firmeza. E deixa-nos uma interrogação que, sendo estética, é violentamente política: será que vamos saber preservar a nossa memória e, através dela, a nossa identidade?


Gravity, de Nicolas Provost (fotograma de Vertigo, de Alfred Hitchcock)