sábado, junho 09, 2007

Reality shows: indigência ou inteligência?

Texto publicado no Diário de Notícias (3 Junho), com o título 'Mais Endemol ou mais Estado?' >>> O símbolo do canal BNN, da televisão holandesa, acaba de entrar para a história dos media no século XXI. E pelas piores razões: primeiro, o BNN anunciou De Grote Donorshow (qualquer coisa como “O Grande Doador”), uma produção da Endemol empenhada em promover um pouco mais o desaforo dos reality shows, com uma doente terminal a escolher uma pessoa, entre três candidatas necessitadas de um transplante, para doar um dos seus rins; depois, tudo se revelou uma imensa encenação (ver DN de ontem), alegadamente montada para pressionar a classe política holandesa no sentido de resolver o problema das listas de espera para doação de órgãos.
O mero “conceito” de “O Grande Doador” era já qualquer coisa de sinistro. Tratava-se de lidar com um problema social complexo e incómodo, transformando-o numa pública feira de obscenidades. Agora, perante o volte-face em que tudo se “esclarece”, importa reavaliar o assunto. Importa, sobretudo, não aceitar a hipocrisia moral segundo a qual tudo se “justifica”, porque era “por bem”...
Tal como no Big Brother (imagem de marca da Endemol), a discussão do que é “verdade” ou “mentira” não basta. E não basta porque o dispositivo do reality show se baseia numa premissa que, mais do que nunca, é preciso desmontar: mesmo se se tratasse da imaculada transposição de uma verdade absoluta, nada na televisão (como em qualquer dispositivo de comunicação social) pode ser esvaziado das suas responsabilidades.
De facto, a Endemol produz alguns shows cuja ideologia se pode resumir neste maligno enunciado: “porque nos limitamos a mostrar as coisas como elas são, então não somos responsáveis”. É preciso recuar ao princípio mais rudimentar do espaço mediático. E é preciso enunciá-lo na sua desencantada transparência. Ou seja: as coisas “como elas são” não existem. Tudo pressupõe um ponto de vista de quem organiza e difunde as mensagens, sejam elas quais forem. Na prática, quem emite uma simples imagem, assume alguma forma de responsabilidade. Ora, com o mecanismo posto em marcha por “O Grande Doador”, aquilo que é directamente visado é o próprio espaço de manobra do Estado na defesa dos interesses dos cidadãos (neste caso numa área específica da medicina). Não se trata, entenda-se, de favorecer uma visão idealista e “romântica” do Estado (seja ele qual for). Trata-se, isso sim, de reconhecer o niilismo mórbido que assim se promove: por um lado, sugere-se que o Estado, logo o colectivo social, se tornou impotente e inócuo; por outro lado, celebra-se a televisão como espaço de uma nova pornografia em que, em nome do bem comunitário, aprendemos a ver-nos como seres dúbios, falsos, sempre a trocar simulacros simbólicos e afectivos.
Acontece isto numa Europa em que é possível estabelecer regras universais para, por exemplo, não invadir as ruas com cartazes de publicidade a tabaco. Em todo o caso, esta é a mesma Europa cujas elites políticas assistem todos os dias, impávidas e assépticas, à degradação do seu mais poderoso meio de comunicação: a televisão. É preciso pedir, não qualquer forma de repressão, mas mais Estado. E esperar que, contra a indigência televisiva, os políticos não tenham medo de promover a serena luz da inteligência.