quarta-feira, junho 20, 2007

O disco da unanimidade

Ano Bowie - 50
'Low', álbum (1977)


Não é fácil escolher “o” álbum de David Bowie, tantas que são as referências fulcrais numa obra diversa e vasta. Contudo, a fazer-se a escolha, Low frequentemente acaba empatado com Ziggy Stardust. Desempatando, escolha-se o primeiro. E porquê? É tão visionário quanto Ziggy, fonte de descendência imensa. Mas, mais que esse monumento de 1972, Low cruza num só momento uma vontade de experimentar novos caminhos para a canção, assim como compreende o desafio textural, mais experimental, demonstrando atenção sobre o que de mais novo acontecia nas franjas da música popular (e não apenas) do seu tempo. Curiosamente, o disco começou por ser uma proposta, rejeitada, de banda sonora para o filme The Man Who Fell To Earth (1975) de Nicolas Roeg, protagonizado pelo próprio David Bowie. Contudo, mais que uma fonte de frustração perante essa rejeição, a música de Low nasce como um processo quase terapêutico numa etapa difícil (de que Diamond Dogs é premonição e Station To Station um fruto). Apesar de indicado como o primeiro de uma “trilogia” berlinense, Low teve primeiras sessões nos estúdios do Chateau d’Herouville, perto de Paris, onde Bowie já havia gravado Pin Ups (1973) e os portugueses Sérgio Godinho e José Mário Branco registado os seus primeiros álbuns. Fulcral no desenvolvimento de um álbum que teve Tony Visconti como produtor foi o desafio lançado por Bowie a Brian Eno, ex-Roxy Music cujas recentes experiências texturais em Another Green World e, sobretudo, Discret Music (1975) tinham sido banda sonora recorrente durante as suas viagens de carro na América, em 1976. Eno, por seu lado, considerava Station To Station (1976) um dos melhores álbuns de sempre, relacionando-o inclusivamente com caminhos que havia percorrido nos primeiros tempos dos Roxy Music. Mais próximo de John Cage e Philip Glass que dos manifestos pop/rock de então, Eno trouxe a Low (e aos subsequentes Heroes e Lodger) uma noção de contraste. O desafio que lhe foi lançado originalmente por Bowie visava a construção, conjunta, de um álbum que tinha por título de trabalho Night Music, Night and Day... Na verdade, Low não parece fugir muito desta sugestão. Mais que apenas vincar a vontade de Bowie em ter o som dos Kraftwerk como ponto de partida e de permitir uma abordagem de conhecedor às novas máquinas, Eno trouxe a estúdio técnicas de trabalho desafiantes, nomeadamente as “oblique strategies” (que tinha desenvolvido em 75 com Peter Schmidt), entregando aos músicos cartões aleatórios com sugestões a cumprir durante as sessões de gravação. Problemas pessoais afastaram o trabalho para Berlim, onde as sessões continuaram nos estúdios Hansa. A cidade revelar-se-ia uma descoberta terapêutica para Bowie. Anónimo, voltou a andar pelas ruas. Ao mesmo tempo, a herança cultural da cidade cativou-o. Começou a pintar. E aí fixou residência. Low, apesar de traduzir uma ruptura de Bowie com uma lógica narrativa na escrita, traduz claramente o seu tempo. O lado A é claramente autobiográfico, reflectindo sobre um período de recuperação de um fosso, o final do casamento com Ângela, o isolamento, até mesmo algum sentido de vazio que conheceu nos dois anos anteriores. No outro lado, os desafiantes instrumentais no lado B revelam um sentido contemplativo, por vezes descritivo, mesmo que assombrado (mas não pelos demónios anteriores, antes, pelo universo ao seu redor). Editado em Janeiro de 1977, era diferente de tudo o que então surgia ainda em tempo de revolução punk. Gerou reacções divididas. O tempo acabaria por trazer-lhe invulgar unanimidade.