domingo, junho 03, 2007

Na medula do minimalismo

A invulgar liberdade concedida à interpretação de In C poderia justificar, por si só, a quantidade (rara para uma peça do género) de gravações que esta obra já conheceu. Contudo, é o seu significado histórico, enquanto momento fulcral de definição de uma nova música que mais explica porque uma obra relativamente desconhecida do grande público, nascida em terreno vanguardista na América de 60, é tão cara a melómanos e músicos. Seguindo no tempo algumas das primeiras sugestões de La Monte Young, mas antecedendo por alguns meses as primeiras manifestações de semelhante atitude em músicos como Philip Glass ou Steve Reich, In C revelou em Terry Riley um dos arquitectos fundamentais daquilo a que Michael Nyman, quatro anos depois, definiria em texto teórico como minimalismo.

David Harrington, do Kronos Quartet, disse um dia que era impossível falar de Terry Riley (na foto) sem passar por In C (de 1964), uma obra que interpreta como “uma ideia sobre a vida, sobre o que é fazer música em conjunto, sobre comunidade”, acrescentando ser esta uma obra tão “simples e profunda” que “soa sempre bem e sempre diferente”. Tem absoluta razão. In C é uma obra que parte da possibilidade de repetição, sem limite definido, de 53 simples frases musicais numeradas. Não é definido o número de vezes que cada frase pode ser repetida, havendo liberdade interpretativa para até deixar uma ou outra por tocar, obrigação apenas para seguir a sua ordenação numérica e para cada músico estar a duas ou três frases do vizinho do lado. Livre é também o número de músicos que podem interpretar In C, 35 sendo o número “ideal”, mas podendo descer-se a um mínimo de 11 ou crescer sem limite, o recorde alcançado em 2006, no walt Disney Concert Hall, em Los Angeles, com 124 músicos. A duração da interpretação pode oscilar entre um mínimo de 15 minutos e umas longas horas de música, sugerindo o compositor que a versão ideal se deve escutar entre os 45 e 90 minutos. Cada ensemble define com que instrumentos deve abordar as frases, sugerindo algumas partituras que uma “menina bonita” toque um dó (o “C” do título) a cada oito notas, definindo uma espécie de metrónomo pelo qual se estrutura a solidez da interpretação.
A presente edição de In C (edição Ars Nova) oferece uma leitura substancialmente diferente da evidente cenografia indiana (uma das paixões de Riley, é certo) que domina gravação de 2000 pela Atma, dirigida por Walter Badarou, à frente da Societé de Musique Contemporaine du Quebec, habitiualmente disponível nas nossas lojas com secção de música contemporânea. Juntando as vozes do Ars Nova de Copenhaga e o Percurama Percussion Ensemble, sob direcção de Paul Hillier (o fundador do Hilliard Ensemble), é-nos oferecido um mergulho musicalmente preciso, mas emotivamente assombroso de uma obra que nos conquista aos poucos, sugerindo um transe hipnótico semelhante ao que recordamos de outras peças históricas do minimalismo de 60 (como as experiências vocais de Reich ou as primeiras obras para teclado electrónico de Glass), contudo expressando um sentido de invulgar complexidade ordenada onde, na verdade, mais não há que simples frases. A tal noção de comunidade frisada por David Harrington é, aqui, uma evidência.
PS. Em suma, talvez esteja aqui a melhor gravação de sempre de In C. Ou seja, há por aí algum pequeno distribuidor para trazer esta obra-prima ao nosso mercado?