domingo, maio 20, 2007

Postal de Cannes, 19 de Maio de 2007

Michael Moore não é, evidentemente, uma personagem pacífica. E bastará recordar todas as ondas de choque geradas pelo seu Fahrenheit 9/11, curiosamente, desencadeadas em Cannes, com a conquista da Palma de Ouro de 2004. Ao reaparecer com Sicko (fora de competição), o mínimo que se pode dizer é que Moore se mantém fiel a si próprio. Ou seja: podemos discutir infinitamente a sua visão (profundamente negativa) do sistema de saúde dos EUA, duvidando até de alguns momentos em que o seu tom naïf parece mais fabricado que sincero. Em todo o caso, na sua lógica documental e, mais especificamente, de reportagem, Sicko funciona também como uma critica implícita às muitas imposturas televisivas que se encenam como uma reposição automática da “verdade”. Ora, Moore é um cineasta que diz que a verdade é sempre construída – sobretudo porque se trata, claramente, da sua verdade, exposta na primeira pessoa e sustentada por uma elaborada teia de entrevistas e documentação de arquivo.
Quem volta também a propor um trabalho eminentemente pessoal é a actriz Valeria Bruni Tedeschi (que se estreou na realização, em 2003, com É Mais Fácil um Camelo…). Desta vez, ela filma actores e actrizes no turbilhão do seu trabalho, por assim dizer divididos entre o “teatro” e a “vida”. O filme [na foto] chama-se Actrices, o que é, talvez, uma descrição algo parcelar da matéria humana que o habita. Mas… porque não? Afinal de contas, no centro de tudo está a fascinante personagem de Marcelline (a própria Valeria), uma actriz com uma vocação trágica que perpassa nas suas composições, mas que se transfere, por vezes de modo selvagem, para o espaço da sua intimidade. Mathieu Amalric e Chiara Mastroianni são alguns dos cúmplices desta aventura entre teatro e cinema.
Um registo importante: o filme israelita na competição - Tehilim, de Raphaël Nadjari - pode ser uma pedagógica porta de entrada no imaginário familiar e religioso de Israel, através da história de uma família dilacerada pelo insólito desaparecimento do seu chefe. É, por isso, um objecto que cumpre uma preciosa função: a de nos confrontar com aquilo (e aqueles) que não conhecemos, sobretudo arrancando-os à ditadura do cliché televisivo.