sexta-feira, maio 04, 2007

Eles andam aí

Desde que H.G. Wells nos fez invadir por marcianos, há já mais de cem anos, as histórias de visitas menos amistosas por parte de alienígenas tornaram-se um dos mais recorrentes temperos para muitos livros e filmes com sabor de ficção científica. Invasão, na verdade, parece à partida apenas mais uma carta a acrescentar ao baralho. Mas revela uma série de condimentações cruzadas que lhe dão personalidade interessante, assim como vive de um trabalho de realização com ambição cinematográfica, conseguindo reactivar as brumas de mistério que foram tutano d’Os Ficheiros Secretos, num cenário pós-catástrofe, algures na Florida dos nossos dias. Quis contudo a má sorte (ou má gestão da ABC na transmissão dos episódios, por várias vezes interrompidos) que a série sucumbisse ao fim de apenas uma época de vida, várias teses (onde não faltam teorias da conspiração, algumas envolvendo eventuais reacções por parte de grupos religiosos) tendo sido levantadas para explicar tão abrupto fim.
O início da exibição de Invasion, em Setembro de 2005, mostrou particular cautela na gestão de um gancho narrativo que, aparentemente inofensivo quando pensado largos meses antes, mas central a toda a história, se transformara entretanto num caso de dor nacional para os americanos. Em finais de Agosto (ou seja, poucas semanas antes), o furacão Katrina havia devastado largas áreas do país e lançado o cais e destruição sobre Nova Orleães... Dominado por um furacão e suas consequências, o episódio piloto foi anunciado com a cautela de chamar a atenção dos espectadores para o facto de encenar um furacão ficcional, aconselhando os eventualmente mais susceptíveis a não ver... Mas um total de 17 milhões de espectadores respondeu à estreia, ultrapassando nessa noite as várias concorrências. Contudo, os últimos episódios exibidos em 2006 mostravam índices de audiência inferiores a metade dos que tinham assistido ao lançamento da série, alguns meses antes. Razão essa a invocada pela ABC para decretar o cancelamento. Durante algum tempo falou-se de eventual passagem da produção para um outro canal. Lançaram-se campanhas e petições online. O próprio blogue “virtualmente” criado pela personagem de Dave veiculou algumas destas campanhas. Mas o fim foi inevitável. E tudo o que nos resta é uma caixa de 22 episódios, em DVD.

Na mais evidente das referências que constroem esta série mora num velho filme de ficção científica dos anos 50. Realizado por Don Siegel, Invasion Of The Body Snatchers contava a história de uma discreta invasão de uma pequena cidade na Califórnia. Os membros da comunidade são “assimilados” por estranhas entidades vegetais que sugam a mente às vítimas para depois tomar os seus corpos... Ideia revisistada pelo remake de 1978 de Philip Kaufman e assimilada por Abel Ferrara no seu Body Snatchers, de 1993. Invasão junta a esta condimentação central uma velha tese de medo que levanta a hipótese de, na verdade, já haver alienígenas escondidos entre nós, à espera da hora para atacar. E tempera a história com um dispositivo narrativo complementar que nos revela as difíceis relações de duas famílias desfeitas por divórcios, partilhando filhos, ambas reflectindo sequelas dos incidentes que são gatilho para toda a acção.

No primeiro episódio de Invasão, o violento furacão Eve abate-se sobre uma zona pantanosa na Florida. A destruição é evidente, perdendo a comunidade que nos é apresentada o acesso à água canalizada, luz e gás. Entre esta comunidade conhecemos duas famílias, outrora ligadas. Numa é-nos apresentado um enérgico guarda florestal, a sua nova mulher (repórter de televisão) e dois filhos, de um primeiro casamento com uma médica agora casada com o xerife. As tensões entre estes dois núcleos acompanham desde esse momento o desenrolar de estranhos acontecimentos que, aos poucos, tomam conta das preocupações de uns e fazem outros parecer progressivamente mais bizarros, talvez comprometidos. Na noite de maior violência meteorológica, a filha do guarda florestal afirma ter visto luzes descer sobre a água. O seu novo tio, um blogger interessado em tudo o que envolva visitas de extra-terrestres e as eventuais manobras oficiais para as ocultar da população, é atacado por um ser luminescente que nada num pântano. Outros ataques sucedem-se. Jacarés? Peixes? Ou alienígenas?... Ao mesmo tempo, entre a comunidade há quem revele estranhos novos comportamentos, os seus rostos revelando uma paz que contrasta com a desolação que tomou a região. Este grupo, de personalidade aparentemente afectada pelo furacão, revela aos poucos histórias pessoais de salvamento depois de acidente perto da água... E aos poucos começamos a coleccionar suspeitas. Que seres existem na água? De onde vêem? O que pretendem? E até que ponto assimilaram já elementos da comunidade, sob aparente comando do Xerife que isolou a região numa suspeita quarentena...

Com a elegância visual d’Os Ficheiros Secretos, um argumento que doseia cautelosamente a revelação de cada nova situação, Invasão é um raro exemplo de boa resposta com condimentações actuais a velhos lugares-comuns de velhas histórias de medo extra-terrestre. Mais dada a sugerir que a mostrar, a realização constrói uma teia com enredo de thriller em volta das luzes na água e comunidade de comportamentos alterados, que se junta na Igreja para partilhar experiências de salvamento e comungar algo novo que tem em comum... O argumento, que parte do baralhar da noção de segurança que acontece depois de uma catástrofe (o furacão ou os divórcios que afectam as duas famílias protagonistas) doseia mistérios empolgantes, um a cada novo episódio. Mas, contra o desnorte narrativo que está a desmoronar o interesse de muitos os antigos espectadores de Perdidos, Invasão tem a cautela de tentar arrumar cada mistério antes de nos apresentar novas dúvidas. Nem que essa resolução seja apenas a possível no contexto de cada momento. No fim, a cada episódio, acompanhamos uma luta pela sobrevivência. Da família. Da comunidade. Quem sabe, da espécie humana...