Eis uma bela afirmação de trabalho cinematográfico: "Um filme não é uma obra em si. Ao mesmo tempo, faz parte de um todo. Aquilo que se começou a procurar num filme, encontramo-lo noutros. Isso é muito claro, por exemplo, em Hitchcock: cada cena importante é sempre esboçada dois ou três filmes antes; mais tarde, é tratada de forma completa."
São palavras de Jean-Luc Godard, numa entrevista de 1963 a Jean Collet, citadas por Alain Bergala no seu magnífico álbum Godard au Travail - Les Anées 60 (ed. Cahiers du Cinéma). Como o título indica, trata-se de revisitar o autor de Pedro o Louco numa década muito concreta, tanto mais importante quando corresponde ao período de eclosão, triunfo e decomposição da Nova Vaga francesa. Com um texto eminentemente didáctico, congregando uma espantosa colecção de imagens (muitas inéditas), o livro organiza-se como uma visita guiada ao universo plural de um cineasta que, ainda segundo a sugestão de Bergala, filmou nessa década como um pintor que vai colocando, lado a lado, no seu atelier, as telas (completas ou incabadas) de uma assombrosa pesquisa global.
Daí que o livro nos fale — e dê a ver — o que de mais genuíno faz um filme e, por assim dizer, justifica o cinema. A saber: a luta tenaz pela gestação de um momento, pela justeza de um gesto, pela precisão de uma acção. Ou ainda (e para retomarmos a ideia simples, mas essencial, do título): os mecanismos concretos, e também os valores abstractos, do trabalho para conquistar as imagens.
Assim, por exemplo, nestes dois momentos complementares da rodagem de Uma Mulher Casada (1964), com Macha Méril e Bernard Noël. Se nos lembrarmos do filme, as visões fragmentadas dos corpos do par são verdadeiras aparições: decompondo o cliché erótico, Godard expõe a tristeza de uma sexualidade que se transformou num fim em si mesma. No ecrã, há uma intensidade paradoxal: a carne confunde-se com a frieza inacessível de um monumento. No plateau, a mão de Godard procura encontrar a composição certa para a imagem que pressentimos no visor da câmara. O cinema nasce desta coabitação entre o real e a sua imaginação.
* Texto publicado na revista "6ª" (Diário de Notícias), de 2 de Março de 2007, com o título 'Elogio do trabalho'.
São palavras de Jean-Luc Godard, numa entrevista de 1963 a Jean Collet, citadas por Alain Bergala no seu magnífico álbum Godard au Travail - Les Anées 60 (ed. Cahiers du Cinéma). Como o título indica, trata-se de revisitar o autor de Pedro o Louco numa década muito concreta, tanto mais importante quando corresponde ao período de eclosão, triunfo e decomposição da Nova Vaga francesa. Com um texto eminentemente didáctico, congregando uma espantosa colecção de imagens (muitas inéditas), o livro organiza-se como uma visita guiada ao universo plural de um cineasta que, ainda segundo a sugestão de Bergala, filmou nessa década como um pintor que vai colocando, lado a lado, no seu atelier, as telas (completas ou incabadas) de uma assombrosa pesquisa global.
Daí que o livro nos fale — e dê a ver — o que de mais genuíno faz um filme e, por assim dizer, justifica o cinema. A saber: a luta tenaz pela gestação de um momento, pela justeza de um gesto, pela precisão de uma acção. Ou ainda (e para retomarmos a ideia simples, mas essencial, do título): os mecanismos concretos, e também os valores abstractos, do trabalho para conquistar as imagens.
Assim, por exemplo, nestes dois momentos complementares da rodagem de Uma Mulher Casada (1964), com Macha Méril e Bernard Noël. Se nos lembrarmos do filme, as visões fragmentadas dos corpos do par são verdadeiras aparições: decompondo o cliché erótico, Godard expõe a tristeza de uma sexualidade que se transformou num fim em si mesma. No ecrã, há uma intensidade paradoxal: a carne confunde-se com a frieza inacessível de um monumento. No plateau, a mão de Godard procura encontrar a composição certa para a imagem que pressentimos no visor da câmara. O cinema nasce desta coabitação entre o real e a sua imaginação.
* Texto publicado na revista "6ª" (Diário de Notícias), de 2 de Março de 2007, com o título 'Elogio do trabalho'.