
Daí o efeito paradoxal de Dreamgirls: por um lado, organiza-se como uma colagem de quadros musicais com resultados diversos, quer em termos cenográficos e coreográficos, quer no plano das interpretações (em função de um gosto meramente pessoal, direi que as presenças de Beyoncé me parecem sempre muito mais interessantes que as de Jennifer Hudson); por outro lado, o trabalho de direcção de Bill Condon pouco mais consegue que uma "acumulação" de performances, aqui e ali tentando encontrar alguma caução histórica (veja-se a inserção de material documental para "contextualizar" os anos 60).
Os resultados parecem atestar a "impossibilidade" de promover qualquer revivalismo do musical através de valores de espectáculo gerados na televisão, afinal com débeis relações com o imenso e fascinante património das décadas clássicas de Hollywood. Mesmo os paralelismos de Dreamgirls com a memória lendária de The Supremes (Diana Ross, Florence Ballard e Mary Wilson) e, em particular, com a história (simbólica e comercial) da editora Motown, não passam de uma “colagem” com efeitos cinematográficos formalmente banais e tematicamente inconsequentes. Por exemplo, a evocação (breve e indirecta) de figuras como o jovem Michael Jackson reduz-se à criação de "clones", também eles típicos da vulgaridade dramática de qualquer American Idol.
Como paradoxo, fica a composição de Eddie Murphy na personagem de James "Thunder" Early, um decalque inesperado da figura de James Brown. Dispensando o esquematismo de muitas das suas mais recentes personagens de comédia, Murphy volta a mostrar o espantoso actor que pode ser, articulando com brilhantismo os artifícios do entertainment e as convulsões das mais secretas emoções. É pena que Dreamgirls raras vezes esteja à altura das qualidades do seu trabalho.
* Texto publicado na revista "6ª" (Diário de Notícias), de 2 de Março, com o título 'Musical televisivo?'.