No começo de O Terrorista (Civilização Editora), a personagem central, um jovem de nome Ahmad, proclama: “Os demónios.” Refere-se ele a tudo o que a sua vista pode abarcar nos espaços do liceu que frequenta. E acrescente: “Estes demónios querem levar o meu Deus.” Ahmad é filho de uma mãe de origem irlandesa e de um imigrante egípcio (que os abandonou quando ele tinha três anos). Os “demónios” que assombram Ahmad — cujo poder se reforça através da sua própria idealização da figura ausente do pai — vão empurrá-lo para a esfera dos radicais islâmicos, a ponto de ele admitir espalhar a destruição e a morte no seu próprio país.
A perturbação central do novo romance de John Updike (Terrorist, no original) decorre menos da sua actualidade temática — a história da formação ideológica e prática de um potencial terrorista —, e mais da sua calculada inserção nos lugares e rotinas de um quotidiano visceralmente made in USA. Dito de outro modo: Updike não se deixa “esmagar” pela urgência política do tema, não apenas evitando qualquer sentido panfletário ou maniqueísta, mas também mantendo um surpreendente tom de visceral intimismo.
Como é óbvio, estamos longe dos seus mais recentes exercícios romanescos: Seek My Face (2002), obra-prima de discretas comoções, propunha uma espantosa viagem pelas memórias de uma velha pintora, a pretexto do encontro com uma jovem jornalista, enquanto o belíssimo Villages (2004) percorria a biografia de um homem através dos seus diversos lugares de passagem. O Terrorista é mais uma introspecção americana, claramente pós-11 de Setembro, embora sem ficar dependente do peso simbólico dos próprios atentados.
Nesta perspectiva, poderá dizer-se que o romance de Updike está “adiantado” em relação aos filmes que, também em 2006, reflectiram os traumas do 11 de Setembro de 2001 (Voo 63, de Paul Greengrass, e World Trade Center, de Oliver Stone). Liberto da “obrigação” factual do cinema, o autor dispensa a arqueologia directa dos atentados para construir uma ficção que, subtilmente, mobiliza algumas decisivas componentes temáticas do imaginário americano. A saber: a transmissão dos valores paternos; o equilíbrio entre os desígnios individuais e os valores colectivos; enfim, o amor da terra.
Na sua odisseia entre deuses e demónios (os seus e os dos outros), Ahmad conduz o leitor a um terrível reconhecimento: o da banalidade do impulso terrorista. Updike é esse criador de ficções que sabe que a ilusão e o artifício não são apanágio do escritor, começando, afinal, nas relações humanas, na sua luminosidade como nos seus equívocos. O Terrorista (numa tradução eficaz de Carmo Romão) é um espantoso livro para lidarmos com a complexidade do mundo contemporâneo, superando os muitos maniqueísmos que tantas vezes, erradamente, nos levam a ignorar as marcas divinas e os gestos demoníacos."
Na sua odisseia entre deuses e demónios (os seus e os dos outros), Ahmad conduz o leitor a um terrível reconhecimento: o da banalidade do impulso terrorista. Updike é esse criador de ficções que sabe que a ilusão e o artifício não são apanágio do escritor, começando, afinal, nas relações humanas, na sua luminosidade como nos seus equívocos. O Terrorista (numa tradução eficaz de Carmo Romão) é um espantoso livro para lidarmos com a complexidade do mundo contemporâneo, superando os muitos maniqueísmos que tantas vezes, erradamente, nos levam a ignorar as marcas divinas e os gestos demoníacos."
* Texto publicado na revista "6ª" - Diário de Notícias (9 Fev. 2007), com o título 'Uma América feita de deuses e demónios'