Dos crimes sexuais à corrupção no futebol, muitos são os casos que, nos últimos anos, suscitaram a discussão do papel da televisão em relação à justiça e, mais especificamente, face ao funcionamento do aparelho estatal da justiça. Na esmagadora maioria desses casos, a discussão reduz-se à avaliação do respeito (ou não) do segredo de justiça. Insisto: reduz-se.
Escusado será sublinhar a importância social e simbólica do segredo de justiça. Tal importância tem sido, aliás, reiterada por personalidades de todos os quadrantes e sensibilidades políticas. Seja como for, o que está em causa excede o problema dos “desvios” a que, com chocante frequência, são sujeitos documentos e informações numa fase em que deviam existir apenas como matéria específica do exercício da justiça e do trabalho dos tribunais. O que está em causa decorre da assunção da televisão como instância de julgamento e, no limite, prova de verdade única e irrefutável.
Há, nesse aspecto, um revelador tique mediático. Sempre que, num debate televisivo, alguém tenta questionar o papel da televisão nessa reconstrução populista da justiça, os moderadores tendem a mostrar-se espantados, por vezes insinuando mesmo que alguém está a tentar anular o saudável papel democrático da própria televisão. Ora, o que é ainda mais espantoso é que tais moderadores não o fazem por cinismo nem desonestidade. Bem pelo contrário: estão apenas a ser genuínos porque, no fundo, acreditam que a televisão se transformou no oráculo automático de todas as verdades. Quer isto dizer que a ideologia do Big Brother conquistou o poder. Na prática, muitas formas de informação televisiva assumem-se como fonte divina de um conhecimento sem rugas nem ambiguidades.
Até mesmo a linguagem quotidiana banalizou essa violência. Dantes a expressão “eles dizem que...” remetia para a classe política e, no tempo do Estado Novo, para as práticas ditatoriais. Agora, “eles” são sempre a televisão. E se é verdade que tal não nos coloca a viver em ditadura, não é menos verdade que a democracia não pode prescindir desta interrogação: que significa termos, todos os dias, um tribunal em casa? Que percepção esse tribunal nos oferece da vida social? E que consciência cívica construímos através dele?
* Texto publicado na revista "6ª", Diário de Notícias (28 Jan.), com o título 'Tribunal caseiro'.