A clássica luta entre o bem e o mal em nova abordagem, cenário apontado à América profunda em, 1934, ainda em tempo de grande depressão, com subtextos de mitologia cristã e magia pagã que lhe garantem personalidade e uma complexa teia de narrativas. Com heranças evidentes de David Lynch e Fellini, uma trupe de circo que parece tirada do Freaks de Tod Browning e ambientes e histórias de vida que lembram as descrições de Steinbeck em As Vinhas da Ira, A Feira da Magia (Carnivale no título original) merece ser apontada como uma das mais inspiradas e cativantes das produções para televisão que a HBO nos tem dado nos últimos anos. Ideia de Daniel Knauf, suportada por uma equipa técnica que lhe valeu vários Emmys em 2005 (entre os quais justas distinções para melhor fotografia e melhor direcção artística), é puro cinema pensado para o pequeno ecrã.
A Feira da Magia foi inicialmente pensada para ser contada ao longo de seis épocas, pelo que a decisão de a cancelar ao fim de duas acaba por deixar algumas pontas soltas. As audiências foram favoráveis à Feira da Magia no início da primeira época, mas ao cabo de 12 episódios tinham caído substancialmente. E nem mesmo a subida gradual a meio da segunda impediu a HBO de, a um terço da ideia concluída, ter decretado o fim, alegando a sua presidente, ter o desfecho da segunda época garantido um final condigno, orgulhando-se dos feitos conseguidos em 24 episódios. Lágrimas de crocodilo que colocaram um fim abrupto a uma série que, entretanto, ganhara estatuto de pequeno culto. Mais uma analogia “Lynchiana” aqui, se nos recordarmos que também Twin Peaks teve ordem de cancelamento no final da segunda época. Entre os extras que a caixa desta segunda série revela (sobretudo em comentários a alguns dos episódios) encontramos uma série de pistas sobre a história que ficou por contar e que, depois da intensa campanha de protestos, leva agora a HBO a ponderar a possibilidade de uma mini-série que resolva, em poucos episódios, a história incompleta.
.Um artigo recente levantou ainda a hipótese do reatar natural da produção... Nenhuma destas soluções, contudo, foi já confirmada pela HBO.Entre as pistas dos comentários no DVD, entrevistas dadas por altura do cancelamento e revelações numa convenção de fãs em 2005, ficou a saber-se que Daniel Knauf tinha imaginado esta como uma história a contar em “três livros”, o primeiro (o produzido) com acção a decorrer em 1934, um segundo (séries 3 e 4) pensado entre 1939 e 1940 e um terceiro (séries 5 e 6), entre 1944 e 45. O rebentamento de uma bomba nuclear (o tal Sol sobre Trinity de que o anão Samson falava no texto de abertura do primeiro episódio) seria palco para o desfecho da história. Destes encontros e entrevistas surgem algumas respostas a pontas soltas, uma delas a razão pela qual Ben havia sido preso. Bom rapaz, tinha afinal morto, acidentalmente, um guarda, depois de ter atacado o gerente do banco que havia confiscado as terras da sua mãe. Agora já podemos dormir descansados.
Na essência, a série mostra-nos duas histórias em simultâneo, que convergem passo a passo para um confronto, frente a frente, no episódio final da segunda época de produção. A arte de bem nos enganar mora na inteligente e elaborada forma como o argumento nos desvenda, aos poucos, realidades que frequentemente entram em confronto com falsas verdades do que antes nos foi dado supor. A luta entre o bem e o mal, por exemplo, é personificada na figura suja e abandonada de um jovem, foragido da uma prisão, que não imagina ter capacidades de curandeiro e um plácido padre metodista que descobre haver em si estranhos poderes quando confronta os que contrariam a sua visão missionária com imagens exacerbadas dos seus maiores pecados. Poderes que toma como de inspiração divina. Porém, o padre acabará possuído pelo demónio (a inspiração divina, afinal, vinha de outras paragens). E ao jovem será entregue a luminosa tarefa de o travar na tentativa de trazer os males do Inferno ao mundo dos homens.
O primeiro episódio, da primeira época, começava com uma breve declaração de dimensão quase bíblica na voz de Samson, um anão (interpretado por Michael J Anderson, que em tempos vimos em Twin Peaks): “Antes do começo de tudo, depois da guerra entre o céu e o inferno, Deus criou a Terra e deu-a a governar ao engenhoso símio a quem chamou homem. A cada geração nascia um ser da luz e um da escuridão... Grandes exércitos chocaram entre si, de noite, numa guerra entre o bem e o mal. Mas nesses tempos havia magia. Nobreza. E uma crueldade inimaginável. E assim foi até ao dia em que um falso Sol explodiu sobre Trinity, e o homem para sempre trocou o encanto pela razão”... Estas palavras encenam por si só o contexto. E depois de as escutarmos descobríamos os protagonistas e satélites desta última geração de seres da luz e escuridão em confronto. Por um lado um circo, chefiado pelo já referido anão, sob as ordens de uma entidade nunca vista, eternamente fechada numa carroça, a quem chama management... O circo, um verdadeiro freak show, onde encontramos uma cartomante coadjuvada por uma mãe em estado catatónico, um vidente cego que mantém uma relação com uma estranha mulher de barba, uma encantadora de serpentes, duas irmãs siamesas, um gigante, um homem de rosto desfigurado, uma família que vive dos espectáculos de strip tease (com complementos, pagos, a sós), entre outros mais. Circo que, a dada altura (descobriremos que a mando do management), passa por Milfay, descampado varrido pela desolação onde o foragido Ben Hawkins (interpretado por Nick Stahl, a “vítima” de Bully) é salvo e resgatado. Longe dali, conhecemos o Padre Justin (Clancy Brown), que começamos por ver entregue a uma missão de auxílio a migrantes sem-abrigo que não agrada à hierarquia da Igreja e à comunidade local mas que, depois de uma catástrofe, acaba transformado num anjo do mal encetando, com a ajuda da irmã, uma missão diabólica de que aos poucos vamos tomando consciência.
O primeiro episódio, da primeira época, começava com uma breve declaração de dimensão quase bíblica na voz de Samson, um anão (interpretado por Michael J Anderson, que em tempos vimos em Twin Peaks): “Antes do começo de tudo, depois da guerra entre o céu e o inferno, Deus criou a Terra e deu-a a governar ao engenhoso símio a quem chamou homem. A cada geração nascia um ser da luz e um da escuridão... Grandes exércitos chocaram entre si, de noite, numa guerra entre o bem e o mal. Mas nesses tempos havia magia. Nobreza. E uma crueldade inimaginável. E assim foi até ao dia em que um falso Sol explodiu sobre Trinity, e o homem para sempre trocou o encanto pela razão”... Estas palavras encenam por si só o contexto. E depois de as escutarmos descobríamos os protagonistas e satélites desta última geração de seres da luz e escuridão em confronto. Por um lado um circo, chefiado pelo já referido anão, sob as ordens de uma entidade nunca vista, eternamente fechada numa carroça, a quem chama management... O circo, um verdadeiro freak show, onde encontramos uma cartomante coadjuvada por uma mãe em estado catatónico, um vidente cego que mantém uma relação com uma estranha mulher de barba, uma encantadora de serpentes, duas irmãs siamesas, um gigante, um homem de rosto desfigurado, uma família que vive dos espectáculos de strip tease (com complementos, pagos, a sós), entre outros mais. Circo que, a dada altura (descobriremos que a mando do management), passa por Milfay, descampado varrido pela desolação onde o foragido Ben Hawkins (interpretado por Nick Stahl, a “vítima” de Bully) é salvo e resgatado. Longe dali, conhecemos o Padre Justin (Clancy Brown), que começamos por ver entregue a uma missão de auxílio a migrantes sem-abrigo que não agrada à hierarquia da Igreja e à comunidade local mas que, depois de uma catástrofe, acaba transformado num anjo do mal encetando, com a ajuda da irmã, uma missão diabólica de que aos poucos vamos tomando consciência.
A primeira época, de 12 episódios (que a SIC Radical exibiu), pouco mais fez que apresentar, ponderada e pausadamente, personagens e ambientes, sugerindo um sem fim de mistérios por explicar, levantando frestas sobre os futuros rumos da história numa série de sonhos proféticos ou visões apocalípticas, tanto do jovem curandeiro como no sombrio padre. É nestes instantes de sonhos e visões que a genética “Lynchiana”, que perpassa toda a série, se torna ainda mais evidente. A segunda época injecta adrenalina na história e personagens. Ben compreende a sua missão depois de conhecer o misterioso management, e parte em busca de uma peça-chave no jogo, o seu pai, o ser da escuridão da geração anterior, mal imaginando que as figuras e situações que encontrará na estrada serão ainda mais bizarras que as gentes do circo que o acolheu. Os destinos de Ben e do padre Justin (que entretanto fundou uma missão, tem um programa de rádio semanal e corrompe políticos ambiciosos) caminham, vertiginosamente, para um encontro decisivo em New Canan, o retiro do anjo do mal, disfarçado de centro de acolhimento de pobres e desamparados.
A Feira da Magia foi inicialmente pensada para ser contada ao longo de seis épocas, pelo que a decisão de a cancelar ao fim de duas acaba por deixar algumas pontas soltas. As audiências foram favoráveis à Feira da Magia no início da primeira época, mas ao cabo de 12 episódios tinham caído substancialmente. E nem mesmo a subida gradual a meio da segunda impediu a HBO de, a um terço da ideia concluída, ter decretado o fim, alegando a sua presidente, ter o desfecho da segunda época garantido um final condigno, orgulhando-se dos feitos conseguidos em 24 episódios. Lágrimas de crocodilo que colocaram um fim abrupto a uma série que, entretanto, ganhara estatuto de pequeno culto. Mais uma analogia “Lynchiana” aqui, se nos recordarmos que também Twin Peaks teve ordem de cancelamento no final da segunda época. Entre os extras que a caixa desta segunda série revela (sobretudo em comentários a alguns dos episódios) encontramos uma série de pistas sobre a história que ficou por contar e que, depois da intensa campanha de protestos, leva agora a HBO a ponderar a possibilidade de uma mini-série que resolva, em poucos episódios, a história incompleta.
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PS. Este texto foi originalmente publicado na revista '6ª', do Diário de Notícias