quarta-feira, janeiro 03, 2007

Este mundo mediático (*)

O mundo conclui o ano de 2006 sob o signo das imagens de Saddam Hussein a ser preparado para a morte por enforcamento. Nesta afirmação, repare-se, o essencial da mensagem não está no factual (“a ser preparado para a morte”), mas no destinatário global (“o mundo”). Dito de outro modo: o planeta em que vivemos (e matamos os nossos semelhantes) consome imagens deste género como coisa natural, naturalmente integrada nas suas sagradas rotinas.
Não estou a discutir o que se “deveria” ou “não deveria” mostrar face às imagens disponíveis. O tema não é banal e, por exemplo, não posso deixar de reconhecer que há diferenças complexas entre a opção da BBC (que cortou as imagens antes de se ver a colocação da corda no pescoço de Saddam) e a que foi seguida por canais como a CNN ou a France 24 (reproduzindo na íntegra as imagens recebidas). Seja como for, não aceito pensar em função da ideologia métrica de muitos directores de informação (televisiva) que apaziguam a sua consciência com avaliações pueris sobre o “muito” ou o “pouco” que mostram, o “perto” ou o “longe” das suas imagens.
Entendam-me: também não estou a tentar lançar a “enésima” discussão sobre as relações entre a brutalidade da ditadura de Saddam e as muitas formas de violência que proliferam no Iraque desde a invasão pelos militares dos EUA. Trata-se apenas de preencher o breve espaço desta coluna de texto com o reconhecimento de uma verdade que, por norma, os responsáveis televisivos e os decisores políticos recusam enfrentar: a de que vivemos num regime pornográfico das imagens em que tudo, mas mesmo tudo (incluindo a morte premeditada de um homem), é tratado como acontecimento “normal” no interior de um fluxo de imagens que tende para a indiferença.
É preciso voltar a questionar todas essas pessoas que, de facto, objectivamente, seguem opções e tomam decisões que delimitam o nosso imaginário quotidiano (feito de imagens e ideias sobre as imagens). É preciso dizer-lhes, sem azedume, mas com grande firmeza moral, que são eles que fazem este mundo mediático que expõe rituais de morte com a mesma indiferença com que retrata alguma personagem incauta numa casa de banho de um qualquer Big Brother. Que em 2007 essas pessoas, ao menos, arrisquem pensar naquilo que fazem.
* Publicado no Diário de Notícias (31 Dez. 2006), com o título 'Pornografia global'.