A Possibilidade de Uma Ilha, de Michel Houellebecq, exibe ligações directas com teses e visões ensaiadas no soberbo Partículas Elementares e mostra, à sua maneira, heranças, naturalmente depuradas, de quadros futuristas com familiaridade com a distopia que Huxley projectou no seu fulcral Admirável Mundo Novo. O livro não é mais que a leitura, dois milénios no futuro, da “narrativa de vida” de Daniel, um humorista dos nossos dias que fez fortuna com sketches de mau gosto e enorme potencial de choque sobre palestinianos, israelitas, a Opus Dei, a pornografia ou o mundo árabe… (auto-ironia?). Daniel é um provocador solitário de grande apetite sexual por mulheres que sabe amar. Uma ocasional visita a um retiro de uma seita religiosa (os Eloimitas), que o atrai pelo modo de vida de promiscuidade sexual que parece sugerir, começará aos poucos a mudar a sua vida. Estes defendem a busca da vida eterna por modelos opostos aos das fés “tradicionais”, a clonagem e replicação das narrativas de vida do ser original sendo os veículos da nova imortalidade. A história de Daniel1 (porque é ele o ser original), lidas e reflectidas pelos seus clones Daniel24 e Daniel25 mostra-nos como a seita, que dá a entender como casa de charlatanice e boa queda para o negócio, cresce e ganha adesões. Sobretudo depois da morte do Profeta, cuja “reaparição” maquinada desencadeia marés de conversões, cada qual legando à seita os seus bens após suicídio (que só tem lugar depois de armazenado o catálogo genético de cada novo crente).
Vista do futuro, a “narrativa de vida” de Daniel1 mostra um mundo que, mesmo decadente, vicioso, eventualmente desumano, é todavia mais vivo e verdadeiro que o dos neo-humanos, comunidade asséptica, assexuada, desprovida de sensações, que vive sob as regras da Irmã Suprema, em enclaves de segurança num mundo que, ao lado, foi alvo de cataclismos vários (a Primeira Diminuição, a Grande Seca), de guerras nucleares a gigantescas alterações climatéricas. Houellebecq não priveligia a descrição da história futura, antes sugere episódios num puzzle de acontecimentos que transformam Madrid num monte de cacos, a Península Ibérica num declive uniforme cinzento, o oceano num painel de charcos salinos. Nem procura reflectir sobre a natureza primitiva dos raros humanos que sobreviveram às catástrofes, devolvidos à natureza selvagem dos nossos antepassados.
Como n’O Admirável Mundo Novo, os nossos sucessores geneticamente manipulados procuram, nas profundezas da sua biologia, ecos de humanidade, de comportamentos perdidos, de esperanças antigas, demanda que os obriga a partir do espaço de conforto físico das redomas em que sempre viveram. O desfecho, contudo, não é semelhante, a “possibilidade de uma ilha” sendo sonhada, mas nunca plenamente atingida em Houellebecq.Polémico? Talvez, antes, provocador. A Possibilidade de Uma Ilha, na verdade, acrescenta ao universo de Michel Houellebecq apenas uma novidade: a das seitas religiosas (e, talvez, uma mais discreta abordagem ao Islão, apesar de pequenas ou médias provocações, a mais bem elaborada das quais uma visão de futuro onde, através da revelação das “verdades do mundo real” pela Internet decretarão a morte, por implosão, dos governos dominados pela conduta religiosa). O escritor viveu algum tempo entre os Raelitas, seita criada por um antigo jornalista francês que serve claramente de inspiração aos Eloimitas de Houellebecq. Como eles vêem o homem como descendentes de extra-terrestres, e visam a imortalidade pela clonagem. Curiosamente, o líder dos raelitas comentou, sem sinais de desagrado, antes pelo contrário, este livro. E, logo, a teoria da conspiração: “será Houellebecq um raelita”?...
(conclui amanhã)