Este é o cenário e o tutano da ameaça que servem Por Água Abaixo, o hilariante novo filme de animação dos estúdios Aardman (os mesmos de Wallace & Gromit e A Fuga das Galinhas), o seu primeiro integralmente criado por animação digital, sob realização de David Bowers e Sam Fell, contando com um elenco de vozes onde se reconhecem figuras como Kate Winslet, Ian McKellen ou Jean Reno. A “marca” Aardman é visível não só na forma (e dentes) das personagens – criadas a partir de modelos em plasticina – como no registo de humor inteligente que tem caracterizado as suas demais produções, e também numa série de citações a Wallace & Gromit em objectos secundários que passam pelos “cenários”. A grande novidade é a integração de canções que por vezes quase estabelecem uma lógica de filme musical. Dandy Warhols, Tom Jones (no histórico What’s New Pussycat, sublinhando heranças de uma genética captada na comédia inglesa de 60) ou Bobby McFerrin são presenças com frequente missão humorista, sobretudo quando, como no caso de Don’t Worry Be Happy, as canções surgem interpretadas pelas lesmas, o grande achado deste filme.
O protagonista é Roddy St James, um rato fino que mora numa gaiola de luxo e que, ao tentar despachar um visitante incómodo via autoclismo, acaba ele mesmo por ir pelo cano abaixo. No esgoto conhece a aventureira Rita, e, pouco depois, o assustador sapo que colecciona merchandise da família real e projecta o extermínio dos ratos e o consequente repovoamento da cidade com os girinos que cria nos seus aposentos. O filme ganha trepidante velocidade quando a corrida do sapo e do rato começa, depois de Rita ter “roubado” um cabo eléctrico fundamental para o plano assassino. A aventura está recheada de citações a outros filmes e séries de TV (do Batman de 60 a Dama e o Vagabundo, de O Exterminador Implacável 2 ao imaginário James Bond, de Mary Poppins a O Império Contra-Ataca) e apresenta como principal adversário dos dois ratos a rã detective Le Frog e seus ajudantes, um deles uma paródia a Marcel Marceau. O filme, que conclui a relação entre a Aardman e a Dreamworks, contém linguagem e humor de intensidade acima da média do politicamente correcto habitual nas animações digitais. E brilha pela forma como recontextualiza objectos e acções num mundo paralelo, destes jogos de nonsense fazendo nascer as maiores das suas forças. Não esquecendo, claro, as lesmas...
Texto originalmente publicado na revista '6ª', do Diário de Notícias