sexta-feira, dezembro 22, 2006

A cinefilia depois de "Borat" (2/3)

Nicholas Ray em "Lightning Over Water" (1980), de Wim Wenders
O cinema, por definição, divide as pessoas — não apenas os espectadores (participantes de um determinado ritual social), mas as pessoas (seres feitos de infinitas e inconciliáveis irredutibilidades). Daí que a cinefilia seja, desde sempre, uma prática que conduz à definição de fronteiras, de linhas de demarcação que nos permitem compreender que não somos iguais. Mais do que isso: que as nossas diferenças encerram uma verdade radical, porventura indizível, de que nunca abdicaremos. Por vezes, um filme separa-nos mesmo de quem amamos... Mas é preciso continuar a viver.
O cinéfilo é aquele que continua a viver, não contra o outro (também cinéfilo, mas violentamente diferente), mas a favor da sua própria diferença. O cinéfilo não procura medidas de exclusão tribal, antes acredita na sua diferença como única tábua de salvação da especificidade do seu olhar. Nesse sentido, não se é cinéfilo para "convencer" os outros (pobre projecto). De alguma maneira, o cinéfilo é aquele que trabalha incessamente no seu próprio "convencimento" — ou melhor, na sua convicção. Ser convicto não é esperar que o mundo se submeta à nossa razão — é saber que só se tem razão para si próprio, se for caso disso até à perdição última desse jogo de espelhos.
Por isso, no limite, o cinéfilo sabe que o cinema tende para a morte. Não para a morte do próprio cinema, tema fascinante mas escasso para dar conta desta vertigem; antes para a morte, tout court, com o seu imenso silêncio. Daí que a história do cinema vá sendo pontuada por filmes que aceitam lidar com essa nitidez da morte, necessariamente dividindo os espectadores, as pessoas e os cinéfilos.
Um desses filmes, a meu ver dos mais cristalinos e perturbantes que alguma vez se fizeram sobre a proximidade da morte, é Lightning Over Water (1980), onde o alemão Wim Wenders filma o seu mestre americano, Nicholas Ray (1911-1979), dilacerado por um cancro, nas semanas finais da sua vida. É um filme que nasce de um contrato terrível, mas também de uma luminosa transparência: o contrato estabelece-se entre aquele que filma e aquele que, ao ser filmado, se expõe numa agonia sem retorno. No fundo, estamos perante um modelo de toda e qualquer relação cinéfila: a do contrato entre um olhar e um filme — um olhar que sabe que o filme aprisionou (e, num certo sentido, matou) algo daquilo que foi filmado; um filme que se reafirma como vida, apesar (e, afinal, através) da morte que transporta.
O cinéfilo morre um pouco em cada filme.

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