O interesse de Sofia Coppola por Maria Antonieta nasceu de uma conversa com um amigo sobre a biografia da rainha por Stefan Zweig. Cativou-a a leitura mais psicológica da jovem rainha, em claro confronto com os estereótipos muitas vezes veiculados noutras abordagens aos dias da Revolução Francesa. Encantou-a a descoberta da história, na dimensão pessoal, de uma adolescente, 15ª filha da imperatriz da Áustria, que abandona o lar para, aos 14 anos, ser estranha numa terra estranha, casando com o herdeiro do trono de Luís XV numa cerimónia poucos minutos depois da sua chegada a Versalhes. A abordagem de Zweig foi ponto de partida para a descoberta de uma outra biografia mais recente, por Lady Antonia Fraser, que aprofundou em si a curiosidade (e identificação) com as ansiedades de uma adolescente e pela forma como, ainda hoje, uma menina de liceu, aos poucos conquista o seu lugar, segurança e acaba por sair do casulo. A Maria Antonieta, revisionista, que resolveu trazer para o cinema não era apenas o símbolo do poder e de um estilo de vida em decadência. Era, antes, a história de vida de uma rapariga que, tal como o jovem marido, se viram no trono de França ainda adolescentes. Sem fazer a mínima ideia do que era governar...
Marie Antoniette não é um documentário. Nem pretende ser uma mera reconstituição histórica dos dias que mediaram a chegada da rainha a Versalhes e a partida, sob escolta popular, rumo a um destino incerto numa Paris sublevada pelos primeiros sinais de revolução. A mesma que decretaria a sua morte quatro anos depois. Sofia Coppola optou antes pela procura de motivos de interesse na vida privada da jovem rainha e, como nos filmes anteriores, faz questão de convidar o espectador a uma viagem virtual ao lugar onde decorre a acção. A autorização, inédita, para filmar em Versalhes, garante por si só uma verdade física que permite, depois, pequenas liberdades de pormenor (uma delas uma espantosa, mas discretíssima, presença de um par de ténis All Star num plano dominado por sapatos de época).
Desde os primeiros momentos de trabalho iniciado na produção do filme fez-se saber que a sua banda sonora seria essencialmente composta por canções... punk (e afins). Assim o foi, New Order, Adam & The Ants, Strokes, Siouxsie & The Banshees ou Bow Wow Wow a partilhar os mesmos corredores, salões e jardins que a música de Rameau e Domenico Scarlatti igualmente usada. A opção, discutível (e que esteticamente, a um primeiro visionamento, só parece fazer absoluto sentido numa cena de baile ao som de Hong Kong Garden e uma outra, de amor, com Kings Of The Wild Frontier), sublinha o carácter impressionista pretendido, vincando, ao lado do rigor nos espaços, roupas, gestos e pequenos objectos, leituras que projectam eventuais afinidades com o tempo presente.
A princesa e, depois, rainha, de Sofia Coppola, é jovem menina deslocada, de horas feitas entre inocência e aborrecimento palaciano. O retrato, fiel ao olhar de Lady Antonia Fraser mostra o choque gélido entre uma adolescente de hábitos diferentes e a ritualidade teatral de Versalhes. O indigno levantar e vestir sob orientação de senhoras da nobreza que lhe invadiam o quarto, o desinteresse pouco comunicativo de um marido com interesses bem longe da jovem esposa, o baile sem música das tardes de passeios, olhares e poucas palavras entre salões do palácio.
Sem a necessidade de injectar um escusado texto de abertura, uma voz off explicativa, ou mesmo diálogos escusados, limitando-nos antes a jogos de olhar sobre cenas da vida de uma corte onde nada acontecia além desta vida ritualizada, com figuras para quem uma nova cabeleira ou vestido eram a profundidade possível, o filme deixa-nos contudo seguir a discreta, mas evidente, mudança de tons. A não consumação do casamento, que durante sete anos deu azo a más-línguas, é acompanhada pelo progressivo distanciamento da rainha para um mundo paralelo de festas pela noite dentro entre o andar superior do palácio e o Petit Trianon, jogo, bailes, gastos atrás de gastos. O nascimento da primeira filha, depois do Delfim, mudam gradualmente a mulher que toma a educação dos filhos como prioridade, abandona as indumentárias vistosas e se refugia num conjunto de casas rurais de madeira nos jardins de Versalhes (o chamado Hammeau de La Reine).
Marie Antoinette conta muito dizendo pouco. Expõe vidas onde a moldura supera a pintura, num mundo deslocado do real. Teatral. Dourado. Mas ostensivamente decadente, alienado, anunciando colapso evidente. Não se presenciam episódios como o famoso “caso do colar” ou a realização dos Estados Gerais em 1789, os únicos momentos concretos retratados na passagem da fronteira da princesa, o seu casamento, a morte de Luís XV e a invasão de Versallhes pela multidão. O texto aqui mora no contexto. As personagens são figurantes num mundo onde apenas ao rei e rainha era dado um papel. A história, que alguma crítica diz não existir, lê-se discretamente nas entrelinhas, adivinha-se nas subtis mudanças. Tal e qual dela tomaria consciência um residente em Versalhes entre 1770 e 1789. A verdade histórica não é evitada. Mas mais que fazer um docu-drama para o Canal História, Sofia Coppola optou antes por mostrá-la do ponto de vista de uma adolescente que é mera espectadora de um mundo cujo destino não está nas suas mãos. Uma vida de prisão dourada, antes de uma outra, mais lúgubre , que, anos depois, lhe serviria, vexada e caluniada, de última morada numa cela da Conciergerie.
PS. Este texto foi publicado na revista 6ª, do Diário de Notícias