sábado, setembro 09, 2006

40 anos nas estrelas

O mais bem sucedido franchising da história da ficção científica, decorre de uma série televisiva de finais dos anos 60 que, durante apenas três épocas entre 1966 e 1969 (originalmente com audiências bem discretas), revolucionou o meio e que esta semana celebrou os 40 anos sobre a emissáo do primeiro episódio (The Man Trap). Herança natural de uma verdadeira explosão de produção no cinema e literatura de temáticas de antecipação científica durante os anos 50 e 60, Star Trek representou a primeira grande experiência televisiva nesta área para um público adulto, abrindo precedentes que ainda hoje dão frutos. Estreada a 8 de Setembro de 1966, Star Trek acabou por conhecer várias vidas na televisão (seis séries, uma delas de animação), no cinema (dez filmes já estreados), nos livros e em todo um vasto leque de merchandise (ainda hoje controlado pela Paramount), comparável apenas ao que George Lucas conseguiu gerar em torno de A Guerra das Estrelas. Antes de Star Trek, a ficção científica tinha já conhecido algumas expressões na televisão, a mais bem sucedida das quais a série Twilight Zone, de finais de 50. Mas em nada se pode comparar essa ousadia pioneira ao impacte que a ideia de “ir onde o homem nunca antes foi”, frase-chave do genérico de Star Trek, conquistaria quase dez anos depois.

Criada por Gene Roddenberry, produtor e ex-argumentista televisivo cativado desde cedo pelas novelas marcianas de Rice Burroughs, a série começou por se desenhar como uma ideia em 1964. Como pilar estrutural apresentava-se uma nave (originalmente a Yorktown) e uma tripulação chefiada por um capitão resoluto (a princípio um certo Roger April), e na qual se integrava um estranho extraterrestre, Mr. Spock, originalmente um ser vermelho de orelhas bicudas e placa metálica no estômago... Com receio de dar visibilidade a um «diabo» politicamente incorrecto, a Paramount pediu alterações, quase exigindo a expulsão de Spock. Encontrou-se uma solução consensual, criando um ser meio humano meio extraterrestre, batalhando entre as duas origens, mantendo as orelhas bicudas.
Depois de um primeiro episódio-piloto, The Cage, rejeitado pelos responsáveis da Paramount em 1965, um segundo, com novo elenco e especificações, mereceu finalmente a confiança da estação televisiva no ano seguinte (a ficção científica não tinha fama de dar audiências nesses dias). A nave tinha entretanto mudado o nome para Enterprise, o comandante chamava-se agora Kirk (William Shatner) e Spock (Leonard Nimoy) mantinha-se entre os protagonistas como oficial científico. Com eles alinhavam, na tripulação, o médico Dr. McCoy (DeForrest Kelley), a oficial de comunicações Uhura (Nichelle Nichols), o engenheiro chefe Scott (James Doohan) e o timoneiro Sulu (George Takei). O oficial Chekov (Walter Koenig) só se juntaria à tripulação na segunda época, ideia do próprio Roddenberry para retratar um mundo onde os conflitos internos estavam resolvidos, ou seja, bem posterior aos da guerra-fria em que se vivia.
A série cresceu e prosperou entre 1966 e 69, estendendo-se ao longo de três épocas e 79 episódios (uns mais inspirados que outros). Firme ao leme dos acontecimentos, Roddenberry fez questão de garantir às histórias uma certa verosimilhança (dentro de padrões de ficção, é claro). Para tal foi criada toda uma ordem astronómica, tecnológica e política, a qual funcionou para os episódios como um livro de estilo para um jornal. O universo revelava-se, semana a semana, em histórias tão sofisticadas quanto o magro orçamento de produção permitia, usando cenários e figuras do futuro para analogias e reflexões sobre o presente, abordando agendas humanistas e de evidente optimismo. Os argumentistas ao serviço de Roddenberry escreveram histórias sobre a escravidão, mundos dominados por potências militarizadas, figuras discriminadas… A Enterprise estava assim entregue a uma missão de cinco anos para «ir onde o homem nunca foi», em busca de novas formas de vida, novas civilizações, tentando perguntar primeiro e disparar depois...

Star Trek é uma das mais vivas forças da cultura pop desde finais de 60. Fundou uma legião de admiradores com nome próprio (trekkies, designação reconhecida pelo Oxford English Dictionary). E conheceu até projecção na vida real quando, em 1976, a NASA deu ao primeiro protótipo do vaivém espacial o nome de Enterprise.
Star Trek abriu uma nova era de relacionamento entre a produção televisiva e os seus consumidores, lançada por encontros e convenções desde inícios dos anos 70, que revelaram um culto maior que o que a estação Paramout julgava ter quando, em 1969, cancelou a produção dos episódios da série original. Só então a estação se apercebeu do impacte cultural de uma série que tinha, entre outros feitos, permitido o primeiro beijo inter racial da história (entre Kirk e Uhura). O protagonismo desta cena aconteceu depois de uma etapa inicial de vida da série na qual o papel de Uhura (interpretado por Nichelle Nichols) pouco mais exigia que serviços mínimos e deixas curtas. A actriz chegou a queixar-se e a ameaçar afastar-se, demovida então de o fazer por Martin Luther King, que lhe apontou a importância da presença de uma figura afro-americana em ambiente e papel de igualdade com os restantes membros de uma tripulação essencialmente branca.
O impacte de Star Trek no mundo da televisão e cinema dos últimos 40 anos é notório. Depois de uma vida inicial entre 1966 e 69, a série não mais deixou de residir em horários de repetição em estações de televisão de todo o mundo, aí sublinhando em definitivo um culto ainda sem par na história da ficção televisiva. Em 1973, por um ano, e sem grande sucesso, uma série de animação deu continuidade a personagens. Cinco anos depois, Star Trek: Phase Two, nova série, chegou a estar em pré-produção, mas acabou transformada no primeiro filme Star Trek, com realização de Robert Wise. O regresso ao pequeno ecrã fez-se só em 1987 com Star Trek: The Next Generation, sob coordenação de Robbenberry até à sua morte, em 1991. Esta revelou-se, no plano das audiências, complexidade narrativa e na direcção artística, a mais bem sucedida das séries Star Trek, com produção de episódios por sete épocas, até 1994. Seguiram-se, por vezes com sobreposição de vidas activas, Star Trek: Deep Space Nine (1993-99), Star Trek: Voyager (1995-2001) e Star Trek: Enterprise (2001-2005), estas últimas com audiências menos volumosas.Em 40 anos, Star Trek conquistou 31 Emmys (de um total de 140 nomeações), mas nunca um Óscar. Todavia, os dez filmes somaram rendimentos na ordem dos 1,76 biliões de dólares. Há 120 discos Star Trek (sobretudo bandas sonoras e lições de klingon), 40 jogos de computador, e uma vasta oferta de episódios e filmes em VHS e DVD. Há 70 milhões de livros Star Trek publicados pelo mundo fora. Há centros Star Trek em parques de diversão da Paramount, exposições itinerantes e uma fixa, a Star Trek Experience, em Las Vegas. Apesar do fim (aparente) da vida televisiva do franchise, um décimo primeiro filme está já anunciado, tendo por responsável J.J. Abrams (o criador de Lost)…

O universo Star Trek por vezes gerou já as mais inesperadas provas de admiração e devoção entre fãs. Desde as convenções em que os admiradores se vestem a rigor (cada qual com o uniforme da personagem, departamento ou série de que mais gosta) aos manuais técnicos e históricos compilados a partir das indicações ficcionadas nos episódios, há de tudo para todos os gostos. E porque não, também, um Star Trek em lego? É o que podem ver num site no qual a ponte da nave Enterprise original é "legificada" na perfeição. Nem falta o auricular de Uhura nem mesmo aquele visor de ecrã vermelho, só para os olhos, de Spock... 40 anos depois, a imaginação ainda a ir onde o homem nunca antes foi...

Versão longa de um texto publicado na edição de 8 de Setemro da revista '6ª', do DN

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