terça-feira, agosto 08, 2006

O teorema de Godard

Quem está nesta imagem? François Truffaut e Jean-Pierre Léaud, algures num momento feliz da Nova Vaga francesa. Mas está também a escrita ou, é caso para dizê-lo, a mão de Jean-Luc Godard, sobrepondo à imagem as marcas da sua própria inter-venção/reinvenção/relançamento. O conhecimento do cinema, e através do cinema, é feito destes gestos: revisitar a memória, refazê-la no presente, reaprender a olhar — a imagem provém, aliás, de um dos objectos godardianos, Histoire(s) du Cinéma (1998), onde podemos encontrar uma concretização acutilante e exemplar de tal filosofia.
A imagem pode também servir de símbolo da extraordinária exposição/instalação de Godard, ainda patente no Centro Pompidou, em Paris (até 14 de Agosto). E é preciso vê-la para corrigir a ideia antecipada de que se trata de um balanço da vida e obra do cineasta. Nada disso: são três espaços contíguos, não demasiado grandes, traçando uma viagem concreta-&-imaginária pelos tempos primitivos do cinema, pela sua transformação em fenómeno do século XX, enfim pela sua transfiguração em coisa do nosso quotidiano, ao mesmo tempo facto doméstico e evocação sempre imperfeita de uma paisagem utópica, talvez para sempre perdida. Aliás, o título exacto da exposição é "Viagem(ns) na utopia, Jean-Luc Godard, 1946-2006". E o subtítulo proustiano envolve, de uma só vez, a tenacidade de uma pesquisa militantemente insatisfeita e a melancolia de um mundo irrecuperável: "À procura de um teorema perdido".
Apesar da sua relativa pequenez (globalmente, talvez um quadrado de 20m de lado), o espaço montado no Pompidou percorre-se como um labirinto em que é possível perdermo-nos ou aquietarmo-nos em todos os lugares, reforçando o sentimento de que a origem do movimento, essa já não a sabemos localizar nem nomear. Há imagens de muitos filmes — de Godard e outros (Dovjenko, Bresson, Melville, Renoir, Lang, Rossellini, etc.) —, vistas em ecrãs de plasma que tanto se oferecem na sua pose normal, como transfigurados em mesas, em adereços de cama ou em tesouros esquecidos no meio de um jardim frondoso.
De objectos de pintura (Matisse, por exemplo) a comoventes desenhos infantis, de um comboio eléctrico a uma cozinha exposta como num hipermercado, de livros cravados com ferros no tampo de uma mesa a telemóveis encenados como troféus de coisa nenhuma, estas "Viagens" têm, de facto, a energia ao mesmo tempo metódica e perturbante de um teorema que esclarece o nosso trabalho de espectadores — somos aquilo que vemos, o que não quer dizer que vejamos sempre aquilo que somos.

Entre as edições surgidas em paralelo com a exposição Godard vale a pena destacar:
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Jean-Luc Godard/Documents: catálogo/memória com sinopses, esboços de trabalho, testemunhos, etc., etc.; inclui DVD com, entre outros materiais, a curta Lettre à Freddy Buache (1981).
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Godard, Le Cinéma: por François Nemer, pequena e modelar monografia que faz o inventário (informativo e crítico) dos quase 50 anos da filmografia godardiana.
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Godard/Sollers, L'Entretien: DVD (ArtPress) com o célebre registo, realizado por Jean-Paul Fargier, de um diálogo entre Jean-Luc Godard e Philippe Sollers, a 21 de Novembro de 1984: discute-se o dogma da Imaculada Concepção, a propósito do lançamento do filme de Godard, Je Vous Salue, Marie.

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