Como já é da tradição, Cannes voltou a dar uma atenção muito particular aos documentários (afinal de contas, foi aqui que, há dois anos, um juri presidido por Quentin Tarantino deu a sua Palma de Ouro a Fahrenheit 9/11, de Michael Moore). Este ano, um dos momentos mais fortes dessa zona da programação foi a passagem de John Wayne/John Ford: The Filmmaker and the Legend, uma realização de Sam Pollard que comete a proeza de reunir, entre os seus entrevistados, uma lista de notáveis, incluindo Peter Bogdanovich, Robert Parrish, Mark Rydell, Richard Schickel (crítico da revista Time), Martin Scorsese e David Thomson (historiador).
É um filme que obedece a uma estrutura clássica, combinando imagens dos filmes com documentos (filmes e fotografias), em permanente articulação com as entrevistas. Acima de tudo, trata-se de um trabalho que prova que e possível aplicar essa estrutura sem cair num academismo "cinéfilo" que tudo reduz a verdades adquiridas. Nada disso: estamos perante uma evocação das relações de trabalho entre Wayne e Ford (na foto) que é tambem uma sugestiva viagem pela história do western, uma reflexão sobre as convulsões de uma amizade nada linear e ainda um subtil ensaio em torno das filmografias do actor e do realizador e as suas ligações com cada momento da conjuntura política dos EUA — particularmente sugestiva é a análise da produção e dos temas de O Homem que Matou Liberty Valance (1962) que, numa afirmação absolutamente ponderada, Bogdanovich define como o "derradeiro filme" do calssicismo americano.
Vale a pena lembrar que o documentário de Sam Pollard tem a chancela da PBS, pertencendo à série American Masters — ou seja: a televisão pública americana a apoiar a defesa do património cinematográfico e promovendo o saudável culto da memória. Dá que pensar...
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