quinta-feira, maio 18, 2006

Postal de Cannes, 18 Maio de 2006

Efeito "Da Vinci": no mercado de Cannes começam ja a surgir os filmes que, tal como na área dos livros, tentam tirar partido imediato da nova franchise — qualquer coisa como "Mona-Lisa-tutti-frutti". Assim, ontem, na capa da edição exclusiva para Cannes de The Hollywood Reporter, é a Mona Lisa que, de facto, surge em destaque, mas num registo perversamente banal. Trata-se de um anúncio a um thriller que dá pelo nome de Stealing the Mona Lisa — nenhum nome conhecido e uma chancela que diz bem do "mundo paralelo" que gravita em torno do calendário das salas: America Video Films (certamente para lançamento directo em vídeo/DVD).
Moral da história: a série B, outrora um espaço de invenção e risco, transformou-se numa imitação acomodada das proezas das grandes produções. À sua maneira, é também um sinal das muitas crises que rasgam o espaço tradicional do cinema. Dir-se-ia que muitos filmes contemporâneos, apesar da pompa que os envolve, têm dificuldade em relançar um dos valores mais primitivos do cinema: o de ser uma ponte instável entre a realidade e a sua representação, entre as ilusões da evidência e a verdade inusitada da ficção.
Daí que valha a pena sublinhar a súbita actualidade das fotografias de Cindy Sherman, uma verdadeira autobiografia construida dentro do cinema, com a autora a assumir-se como personagem imaginária da própria imaginação cinematográfica. Tais fotografias são matéria de destaque nos principais jornais e revistas de França, uma vez que a galeria Jeu de Paume, em Paris, inaugurou uma enorme exposição dedicada à sua obra. Reveja-se, por exemplo, esta admirável imagem (Untitled Film Still #48, 1979) — o cinema é, aqui, memória e delírio, certeza e sonho.
Tais palavras convinham bem ao primeiro titulo realmente forte da competiçao: Fast Food Nation, ou Richard Linklater (Antes do Anoitecer) a construir uma visão ao mesmo tempo didáctica e vertiginosa de um país em que a máquina de produção de fast food reproduz toda uma lógica social de massificação e consequente perda de identidade(s). Adaptado do livro homónimo de Eric Schlosser (vale a pena ler um extracto), trata-se de um caso exemplar de um cinema genuinamente politico, muito para além de qualquer facilidade panfletária.

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