sábado, março 04, 2006

Ruim ou não ruim, eis a questão

O cinema fantástico, em qualquer das suas derivações e categorias (nomeadamente o terror), não costuma constar do cardápio regular de interesses do cinema português, nem de quem o faz. Por estes lados, de resto, o terror em cinema mora na má fotografia, nas débeis direcções de actores, nos argumentos mortalmente desinteressantes e, sobretudo, no som de fugir que, ano após ano, encontrámos em muitos dos filmes que os nossos impostos ajudaram a pagar (nada de crítica populista por aqui que, sem subsídios, então quase não haveria cinema entre nós e ainda acabaríamos a acreditar que a nossa capacidade de fazer ficção se esgotava nas telenovelas e aí, sim, o terror, o terror…).
Alguns filmes recentes mostraram-nos contudo sinais de maior primor técnico por parte de uma nova geração de profissionais (o que não nos impede de verificar, também, que há veteranos também exigentes e capazes do melhor cinema, o excelente O Delfim, de Fernando Lopes, que sirva aqui de exemplo). E, depois de no ano passado termos encontrado uma nova postura perante a imagem, o som e a vontade em contar histórias com figuras de carne e osso e espaços em seu redor no espantoso Odete de João Pedro Rodrigues e em Alice, de Marco Martins, eis que vemos, na segunda estreia portuguesa de 2006, mais um exemplo de um cinema no qual as características técnicas não nos fazem fugir da sala aos primeiros minutos de som e imagem.
Coisa Ruim não é exactamente um filme de terror, mas colhe algumas características formais no seu livro de estilo, das imagens de escuridão, figuras fantasmáticas e clima de tensão constante às condimentações de uma história que convoca maus olhados, medo e morte. Com evidentes (e assumidas) marcas do cinema de Shyamalan e uma não menos clara presença de Os Outros, de Amenábar, Coisa Ruim coloca-nos perante a mudança de uma família de Lisboa, céptica, agnóstica, científica (o pai é biólogo) para uma distante aldeia mergulhada em histórias de fantasmas, velhos de rugas que escondem medos e silêncios e onde se praticam exorcismos por tudo e por nada, o último a uma rapariga a quem a primeira menstruação foi mais fácil de explicar como coisa do demo que natural episódio da sua vida sexual.
Sem revelar a história (isso faz-se sentado na sala de cinema, com ecrã à frente), podemos dizer que Coisa Ruim coloca a família lisboeta num clima de dúvida, diluindo-se aos poucos a fronteira das velhas certezas científicas perante sons e visões numa casa que se diz assombrada, uma sessão espírita inquietante e uma contradição evidente entre a postura perante estas estranhezas pelos dois padres da região, o mais velho aparentemente dominado pelas mitologias locais, o mais novo com ar de quem as procura explicar sem recurso ao desconhecido.
Apesar de um ou outro momento menor (o desfecho merecia mais trabalho na escrita, encenação e, sobretudo, interpretação), Coisa Ruim não faz do título o rótulo necessário pelo qual podemos avaliar o filme. É um bom esforço e tem na capacidade em adaptar farrapos de histórias que vimos e lemos noutros filmes e livros a um espaço rural claramente português, explorando de forma interessante o eterno debate entre a razão e a crença.
A banda sonora, apesar de por vezes inadequada ao registo de imagem e da história que procura servir, é mais um exemplo de boa capacidade de resposta dos músicos desta terra ao cinema que por aqui se faz. N.G.

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