quinta-feira, março 02, 2006

Em directo para a televisão

A poucos dias da entrega dos Oscares chega às nossas salas mais um dos filmes destacados pelas nomeações e que, ao mesmo tempo, se junta às estreias recentes de Munique (de Steven Spielberg), Syriana (de Stephen Gaghan) e Vai e Vive (de Radu Mihaileanu) para fazer do actual cartaz em sala uma invulgar, mas justificada, concentração de cinema político. Trata-se de Boa Noite, e Boa Sorte. (no original Good Night And Good Luck), de George Clooney (sem segunda obra, depois da estreia em 2002 em Confessions Of A Dengerous Mind). O filme confirma Clooney como a mais viva e mediática força liberal do actual cinema norte-americano, e com uma capacidade em comunicar uma posição e pontos de vista cada vez mais eficaz que os jogos maniqueístas de Michael Moore.
Na superfície, o filme aborda o combate frontal entre o jornalista da CBS Ed Murrow e o senador do Wisconsin Joseph McCarthy, na América de meados de 50 quando, sob uma capa de patriotismo radical, e consequente caça às bruxas (leia-se, comunistas), foram afastados dos seus lugares muitos profissionais, instalando-se um regime de denúncia e terror que, à maneira do século XX, quase lembrava a atmosfera de ansiedade que muitos certamente viveram durante a revolução francesa (tão bem retratada no sublime A Inglesa e o Duque, de Eric Rohmer). O terror instala-se, sobretudo entre a comunidade jornalística, e chega à redacção da CBS e equipa do próprio Murrow que, cigarro sempre na mão, decide enfrentar o senador, desmascarando a sua verve acusatória baseada apenas em rumores e suspeições, mas implacável quando proferida de cátedra, entre pares, microfones frente ao acusado e câmaras a documentar a sua viagem à cave das esperanças.
Mas mais que um simples retrato, por dentro, de uma das campanhas que mais contribuiu para o início da derrocada de McCarthy, o filme de George Clooney lança um debate sobre os destinos da televisão, afinal a ferramenta usada na comunicação de Ed Murrow. A televisão, na qual o jornalista identificava inúmeras potencialidades positivas mas que, ao mesmo tempo, alertava, corria o risco de seguir caminhos errados, fáceis, inconsequentes e, no fim, mesmo perigosos… O confronto entre as palavras quase messiânicas de um discurso de Murrow que marca os momentos altos do filme, e o panorama actual, são, mais que a memória do duelo com McCarthy, a marca verdadeiramente política deste filme… sobre televisão.
Nota final para a soberba fotografia a preto e branco, para um elenco impressionante e uma espantosa e inteligente maneira de intrometer música numa acção entre estúdios e redacção de uma estação de televisão, com momentos de jazz vocal por Dianne Reeves, que surge como se de um programa musical, no estúdio ali ao lado se tratasse, aceitando nós, por várias vezes, durante vários minutos, que a câmara se distraia e concentre momentaneamente na música, antes de voltar à palavra. N.G.

A imagem que ilustra este post é bem reveladora daquilo que está em jogo. Assim, entre a pose de Edward R. Murrow (David Strathairn) para a câmara e o resultado dessa pose no pequeno ecrã ao fundo, acontece um misto de reprodução e recriação — a televisão é essa máquina, ao mesmo tempo sublime e terrível, de "repetir" o real, conferindo-lhe uma nova (i)materialidade e fazendo-a reentrar nos nossos olhos, emoções e pensamentos. O filme de George Clooney sabe evocar esse universo com a acutilância do mais sólido cinema liberal americano, provando que a herança desse cinema dos anos 50/60/70 (Richard Brooks, Sidney Lumet, Sydney Pollack, etc.) se mantém vivíssima e operante. J.L.

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