domingo, fevereiro 26, 2006

ESTREIA: 'O Céu Gira'

O cinema documental começa a ganhar merecido direito de presença na programação das nossas salas, e o filme O Céu Gira, da realizadora espanhola Mercedes Alvarez, é mais uma justificação para esta conquista de espaço. Antiga montadora de José Luis Guerin (o realizador de O Comboio de Sombras), Mercedes filmou, ao longo de um ano, a moribunda aldeia onde nasceu, antigo povoado fervilhante em vida e histórias, reduzido agora a 14 velhos que esperam a morte enquanto falam de memórias, de cemitérios, de ovelhas, do padeiro que ali passa duas ou três vezes por semana, assim como o vendedor de congelados. Perdida no planalto de Castela e Leão, Aldealseñor é hoje um espaço vazio de vida além dos trabalhos de pastoreio, de cultivo de hortaliças para subsistência pessoal, de conversa no largo da Igreja em tarde domingueira, de serões à lareira. O filme regista a sua resignação ao abandono, todavia vivendo as memórias com o prazer de quem as saboreou, não com a melancolia de quem as perdeu. Uma idosa mostra-nos as pegadas de dinossáurio que tem no quintal, sobre as quais brincou em criança. Dois amigos falam da morte e do que os espera. Outra duas visitam um velho palácio árabe antes do início de umas obras que o transformarão em luxuoso pólo de turismo rural. Outros mostram-nos um enorme castro celtibero. Tudo ali é antigo, lento e pacato. Tanto que parecem alienígenas as visitas de duas campanhas eleitorais, carros a vomitar música e palavras de campanha, cartazes colados na parede junto à Igreja, nem bom dia nem boa tarde a ninguém, e acelerador a fundo até à aldeia seguinte. Em paralelo à história da aldeia que morre a olhos vistos, acompanhamos a perda de visão de um pintor que, em Aldealseñor encontra as cores e formas para uma última tela.
Mas nem tudo é perda e morte esperada neste filme. No planalto cruzam-se dois marroquinos, um pastor, o outro um atleta a treinar para o campeonato que se segue. Ali perto uma equipa monta uma bateria de moinhos de vento para captação de energia eólica. E as obras no velho palácio prenunciam outros sinais de vida. Mas nada destas pistas lançadas no futuro parecem interferir com os 14 velhos que ali moram, num ocaso tão pardo e silencioso como o olhar longo e cinzento sobre a paisagem que o pintor capta a pastel.
Contemplativo e poético, O Céu Gira é um documento que regista uma história cuja página brevemente se virará. É um olhar sóbrio, mas nunca despido de emoção, sobre a memória das gentes e dos espaços onde viveram. Um depoimento de amor de uma aldeã (que ali apenas viveu os três primeiros anos) ao seu berço.
Quantas Aldealseñor tem Portugal à espera que nelas se busquem olhares semelhantes, antes que se percam, engolidos pelo tempo? Quantos documentários tem a memória deste país à espera de quem os transforme em filme?

MAIL