sábado, janeiro 14, 2006

"Máquina Zero": guerra íntima

Esta imagem pode simbolizar o universo íntimo, paradoxal e perturbante do novo filme de Sam Mendes: Jarhead, título português Máquina Zero. Estamos, de facto, perante a história de um conflito ambíguo e asséptico, ou melhor, asseptizado — Guerra do Golfo, 1991 — em que tudo foi "purificado", desde os corpos até à informação militar. Sam Mendes, confirmando a sua vocação para abordar os temas mais especificamente americanos (sendo ele inglês), propõe uma visão que, embora remeta para a tradição do clássico filme de guerra, cedo adquire uma dimensão outra, fortemente enraízada numa privacidade que tende, inexoravelmente, para a mais angustiada solidão — esta é, aliás, a adaptação de um relato pessoal, do soldado Anthony Swofford (magnificamente interpretado por Jake Gyllenhaal), alguém que não chegou a enfrentar o inimigo e que, no entanto, regressa radicalmente transfigurado da sua experiência no Koweit.
O filme tem, por isso, algo de um épico a que tivesse sido retirado qualquer efeito de gratificação ideológica. Nenhum conceito de heroísmo prevalece face ao vazio desta deambulação dos auto-apelidados jarhead. Sam Mendes filma um pouco se encenasse uma (falsa) reportagem, conferindo a Máquina Zero a ambiência de uma crónica que, subitamente, aparece tocada pelos sinais irreparáveis da tragédia. Nesse sentido, este é também um filme que prolonga o magnífico Três Reis (1999), de David O. Russell, agora tratando em tom intimista tudo aquilo que Russell encenava em delírio operático. Além do mais, Máquina Zero estabelece ainda uma importante ponte simbólica com a herança (anti)mitológica de Apocalypse Now (1979) — e tanto mais quanto Walter Murch, o genial montador (de imagem e som) do filme de Francis Ford Coppola reaparece, com as mesmas funções, em Máquina Zero.

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