Em 1971, fugiu de casa para ver a primeira edição do festival de Glastonbury. Há poucos anos regressou e projectou um filme que levou anos a concluir. Pediu imagens de filmes caseiros, correu arquivos e rodou as suas próprias cenas. O filme, que foge à lógica televisiva que tem dominado muita da produção documental sobre música, é um mergulho vivo por 35 anos de tribos, factos e músicas. Um olhar pessoal, com crítica evidente à progressiva comercialização de um lugar onde uma nova mitologia rock’n’roll nasceu sobre velhos cenários de outros tempos. O DVD foi recentemente lançado entre nós. Aqui fica a primeira parte de uma conversa com Julien Temple sobre Glastonbury:
Costuma apontar Jean Vigo e os Sex Pistols como catalisadores de um primeiro interesse pelo cinema. Como junta, concilia, essas duas referências?
Eram ambos espíritos rebeldes. O Jean Vigo foi o primeiro a tirar a câmara do tripé e a usá-la nas mãos, que foi um pouco o que os Sex Pistols fizeram com a música, tornando-a mais caseira... Mais fácil de fazer. O Vigo fazia cinema com um pequeno grupo de amigos, fora do sistema e circuito mainstream da sua época. Por vezes era expulso dos estúdios. Mudava os ponteiros do relógio para fingir que tinha mais tempo... Era uma atitude igualmente punk perante a indústria da época e dele nasceu o espírito do cinema independente.
Ou seja, há uma afinidade de atitude entre ambas essas referências que lhe são basilares...
Sim, apesar, claro, das enormes diferenças entre ambos. Mas existe essa ligação espiritual.
Já rodou vários documentários sobre o movimento punk, que viveu intensamente. É uma etapa da história da música arrumada para si, enquanto realizador?
Espero que sim, sobretudo porque terminei há pouco um filme sobre o Joe Strummer, dos Clash. Ou seja, mais uma investida sobre esse período, mas que só comecei a filmar há uns 15 anos. Ele era um grande amigo meu, e vejo o filme um pouco como uma homenagem. Depois deste filme, creio que esse período fica arrumado... Mas foi um período fascinante. Muitas coisas nasceram dali, outras alimentaram-no... Há sempre novas maneiras de o encarar... Foi um movimento que encheu de energia a minha vida, catalisou muitos acontecimentos, e espero manter no que faço marcas de algumas das coisas que me deu...
Sente que esse espírito punk mora na forma como aborda a realização de documentários, fugindo às normas mais simplistas (e televisivas) que dominam muita da produção de filmes sobre música?
As regras do jogo mandam que se faça filmes de uma certa maneira. Dessa maneira, precisamente. Mas esse é o establishment, e só isso é uma razão para não querer fazer nada nesse sentido. Detesto coisas assim!
Glastonbury: The Movie foge, claramente, aos modelos televisivos...
Tentei trazer à vida alguma da alquimia que estava jacente em muitas imagens antigas, sem ter de colocar frente à câmara alguém a explicar o que é que aquilo quer dizer. Cada imagem encontra o seu significado junto de cada espectador, sem a necessidade da intervenção de um especialista estúpido...
Porque cruza no filme imagens captadas em várias épocas e de fontes tão diversas? De 1971 ao presente... De filmes de família a reportagens televisivas, naturalmente juntando depois as imagens que ali rodou nos últimos anos...
Quando se vive uma vida é isso o que se sente. Em Inglaterra, sobretudo se falamos da contracultura, Glastonbury faz parte de uma antiga experiência partilhada. Quando se lida com os 35 anos de um evento temos de o tratar tendo em conta a forma como foi sentido por quem lá passou. Há momentos de 1981 que, para muitos, podem trazer memórias mais vivas que outros de 1995. Ou vice-versa. Não temos de ordenar cronologicamente as coisas para arrumar a maneira como lidamos com memórias do nosso passado. A memória está viva enquanto vivemos.
(continua amanhã)
P.S. Esta entrevsta foi originalmente publicada na revista '6ª', do Diário de Notícias