Será que, na futilidade quotidiana das nossas sociedades de endeusamento do «lazer», ainda temos capacidade para lidar com um filme como Senhor da Guerra (Lord of War), de Andrew Niccol? Porquê? Porque aqui está, sem ambiguidades nem ilusões, um genuíno filme político. No sentido mais cru em que a política se transforma numa obsessão pela frieza do real. Neste caso, um real em que os cinco membros do Conselho de Segurança da ONU — China, EUA, França, Reino Unido e Rússia — são também os maiores comerciantes de armas do planeta.
O mais perturbante resulta, não de um qualquer discurso panfletário sobre tal aberração, mas da sua transfiguração num caso individual (baseado em factos verídicos): o de Yuri Orlov (Nicolas Cage), americano de origem ucraniana que se transforma em negociante de armas, ganhando milhões vendendo objectos de destruição para alimentar guerras em todos os cantos do mundo. Construído a partir de uma espantosa narrativa na primeira pessoa (a que a voz de Cage empresta uma trágica dimensão confessional), Senhor da Guerra é uma espécie de «anti-telejornal»: um filme de um realismo sem cauções que chama as coisas pelo nome — uma bala é uma bala, um cadáver é um cadáver, o Mal não é o contrário da dimensão humana, mas uma das suas componentes mais radicais e irrecusáveis.
Creio que seria (ou será) uma pena se este filme não for visto por qualquer «suspeita» política. No fundo, Andrew Niccol não tem nenhum programa para propor, muito menos um sermão para vender. Filmando quase como se estivesse a fazer um documentário ficcionado, ele confirma-se como uma das personalidades mais originais do actual cinema americano — antes tinha feito Gattaca (1997), espantosa variação sobre modelos da ficção científica, e Simone (2002), uma comédia subtil sobre a relação do cinema com as novas tecnologias virtuais. Senhor da Guerra é a prova de fogo do seu talento e também um dos títulos realmente corajosos do ano cinematográfico de 2005.
* No excelente site oficial de Lord of War encontra-se uma zona dedicada à personagem real em que o filme se inspirou.
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O mais perturbante resulta, não de um qualquer discurso panfletário sobre tal aberração, mas da sua transfiguração num caso individual (baseado em factos verídicos): o de Yuri Orlov (Nicolas Cage), americano de origem ucraniana que se transforma em negociante de armas, ganhando milhões vendendo objectos de destruição para alimentar guerras em todos os cantos do mundo. Construído a partir de uma espantosa narrativa na primeira pessoa (a que a voz de Cage empresta uma trágica dimensão confessional), Senhor da Guerra é uma espécie de «anti-telejornal»: um filme de um realismo sem cauções que chama as coisas pelo nome — uma bala é uma bala, um cadáver é um cadáver, o Mal não é o contrário da dimensão humana, mas uma das suas componentes mais radicais e irrecusáveis.
Creio que seria (ou será) uma pena se este filme não for visto por qualquer «suspeita» política. No fundo, Andrew Niccol não tem nenhum programa para propor, muito menos um sermão para vender. Filmando quase como se estivesse a fazer um documentário ficcionado, ele confirma-se como uma das personalidades mais originais do actual cinema americano — antes tinha feito Gattaca (1997), espantosa variação sobre modelos da ficção científica, e Simone (2002), uma comédia subtil sobre a relação do cinema com as novas tecnologias virtuais. Senhor da Guerra é a prova de fogo do seu talento e também um dos títulos realmente corajosos do ano cinematográfico de 2005.
* No excelente site oficial de Lord of War encontra-se uma zona dedicada à personagem real em que o filme se inspirou.